Ontem, das onze à uma da noite, estive a escutar na Emissora o primeiro acto do Parsifal. E enquanto ouvia, com paciência deliberada, ia pensando em mil coisas, onde sobressaía a recordação da primeira vez que assisti à representação do Parsifal no São Carlos em mil novecentos e vinte e tal. Com o meu Pai. Ambos de smoking. Na plateia. E – ó espanto! – num domingo ou numa terça-feira de Carnaval que, nesses tempos, ainda rugia besta pelas ruas em folias desatadas.
Pois enquanto lá fora se arremessavam saquinhos de tremoços secos e os “dominós” sorriam, suspeitos, nos bailes dos teatros, ali em São Carlos o público, em êxtase doce, ajoelhava diante daquela mauvaise messe do Parsifal que, segundo o Stravinsky (senão me engano), devia ter ficado pelo prelúdio.
Mas nessa ocasião se alguém me viesse com opinião tão sacrílega, estrangulá-lo-ia com mãos de colcheias violentas. O Parsifal parecia-me sublime (e ainda me parece em alguns passos – embora duma sublimidade pré-fabricada) – em perfeito acordo com as lágrimas do meu Pai, que nunca soube aplaudir doutra forma.
Ontem, raivoso de não concordar com os meus fantasmas, aquele interminável primeiro acto afigurou-se-me sobretudo maçador. (…) Claro, tem momentos espantosos – o que não me surpreendeu. O que me surpreendeu foram os outros, os banais, como por exemplo, um coro masculino, género Meyerbeer, quase no fim do acto.
12 de agosto de 1967.
José Gomes Ferreira: Música … minha antiga companheira desde os ouvidos da infância