Raúl Brandão: O Carnaval de 1904 em São Carlos

Ontem, terça-feira de Entrudo, assisti ao espectáculo em São Carlos. Estava tudo, o rei, a rainha, a corte… Senhoras decotadas com os vestidos presos nos ombros por uma fita. A D. Amélia de vermelho. Andava no ar uma bola enorme de borracha, e ao janota que quis saltar dentro dum camarote tiraram-lhe as botas dos pés. Mas a risota, a chalaça, a delícia, era um penico em miniatura que passava de mão em mão, por entre as grosserias, que é do uso antigo as senhoras dizerem umas às outras na terça-feira gorda. O fundo destes risos vem sempre da mesma palavra pegajosa: merda! merda! merda! O rei, gordo e louro, soprava por um canudo setas de papel, botando o olho de revés, e houve um momento em que o infante mostrou do camarote o quer que era de borracha, um canudo cheio de vento, imenso e obsceno. Foi um delírio entre aquelas cabeças empoadas, na gente da alta-roda de que se contam baixinho os escândalos.

Ouçam um destes rapazes que estão na plateia, e que falam das senhoras, como quem fala com desprezo das mulheres da Antónia. – Muita desta gente não se sabe aonde vai buscar o dinheiro. É um mistério. Aquele louro e correcto, que está além numa atitude romântica, ainda há dias quis extorquir alguns contos de réis, para o jogo, a uma mulher casada. Outro só vive da roleta. Mais além, o herdeiro de um nome ilustre, tem um modesto lugar na alfândega, e a mulher usa brilhantes esplêndidos. Aquele, acolá, tão decorativo, é conhecido pelo conde de Monta-a-Velha. São raros os que não têm alcunhas. A uma senhora de perfil soberano chamam-lhe a Vareira. Outra tem um sobriquet infame. Desta e daquela diz-se alto a crónica escandalosa. A mulher do S. deu este ano grande escândalo em Sintra. Outra foi apanhada aos beijos a um embaixador. Com aquela, mais além, fina como uma cobra, e que ostenta um colar magnífico, puseram-se os B. de mal, acusando-a de lhes ter roubado uma carteira com trezentos mil réis, depois de terem sido todos seus amantes. A mulher do J… deixa o marido, pé de boi rico que só lhe serve para puxar à nora, e gasta-lhe a rodos o dinheiro que juntou. Eis esta mãe viciosa com a filha ao lado de olhos límpidos e inocentes. Pior, há pior… E mais esta – e mais esta – e mais esta condessa, que noutro dia foi apanhada no comboio numa atitude pior que equívoca…

Pus-me a ouvir, a ouvir – verdade? mentira? – e lembrei-me ao mesmo tempo da corte da senhora D. Carlota Joaquina e da Chartreuse de Parma.

Raúl Brandão: Memórias

O escritor refere-se à noite de 16 de Fevereiro de 1904, em que se cantou a opereta La fille de Madame Angot de Charles Lecocq. Ver MIL E UMA E MAIS NOITES.

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