Nunca ouvi Teresa Stich-Randall ao vivo, mas a audição da ária Porgì amor d’ As Bodas de Fígaro, há já cerca de 40 anos, num pickup então em funcionamento ali para os lados da Luz, deixou-me boquiaberto, pela pureza de emissão, pelo redondíssimo desenho da frase, pelo legato inquebrantável, pela sinceridade dramática. Fiquei varado. A partir daí nunca mais a deixei. Esta cantora, dentro de alguns séculos, será recordada pelos nossos descendentes como a primeiríssima Fiordiligi a ser ouvida no nosso país, a 7 de Fevereiro de 1958, com tudo o que de vergonhoso esta afirmação acarreta. É verdade: a ópera Così fan tutte de Mozart estreou-se em Portugal no ano em que Humberto Delgado andava a preparar-se para demitir Salazar !!!
Passemos à frente, para não enrubescermos.
Uns anos depois daquela primeira audição na Luz, aí por meados dos Anos 90, tive a ideia de realizar um programa para a Antena 2 dedicado às gloriosas vozes que passaram pelo palco de São Carlos. Conversei então com enormes cantores, mas tenho de confessar que Stich-Randall foi uma das personalidades que mais me comoveu.
A mulher era única! Disse-me coisas absolutamente inesquecíveis nessa conversa, a primeira das várias que depois com ela mantive. Fiquem-se com esta frase:
Eu, quando cantava Bach, sofria com a beleza!
Estas coisas marcam!
Podemos aqui vê-la, numa foto da época, como a Donna Anna de um Don Giovanni cantado no São Carlos em 1961, em récitas que foram de arromba, com Eberhard Waechter, Montserrat Caballé, Waldemar Kmentt, e outros deste calibre.
Apetece-me recordar aqui um episódio quase risível para todos, menos para mim, que o vivi.
A grande cantora norte-americana deu-me, depois da entrevista para o programa Vozes do São Carlos, o seu número telefónico e a sua morada vienenses, fazendo-me prometer que quando eu fosse a Viena, cidade onde então ela residia, a contactaria.
Olha a dificuldade!
Estive, de facto, cerca de um ano depois, na cidade das valsas para me regalar durante uma semana com duas récitas de Roberto Devereux com Gruberova e duas de A Valquíria com Domingo e Behrens e Morris.
Mas não foram estas récitas a única coisa que ouvi em Viena. Nem a melhor! É que, assim que cheguei, telefonei de imediato a Stich-Randall. Confesso que me deixou apalermado a memória auditiva da senhora. Assim que me ouviu as primeiras palavras, disse de imediato:
– Oh, the portuguese…
Mesmo antes de eu ter dito quem era!
Não a vi, para grande desgosto meu, pois agora … só noutra vida. Ela informou-me que o cabeleireiro não tinha podido ir a sua casa e que não recebia ninguém com o aspecto com que estava.
– Of course, madam!
Mas, à conversa pelo telefone, disse-me, entre outras coisas, que cantara a cena final da Salomé, que cantara o Requiem de Verdi, e, a certa altura, chuta-me que Handel também tem música muito bonita, e que (Ohhh! I remember now!) cantara a Alcina deste compositor em São Carlos. Eu disse-lhe que dava tudo para poder ter ouvido essas récitas. E ela decidiu presentear-me então com a música de Haendel. Num italiano estranhamente exótico confessou:
Io adoravo cantare quel’aria “Piangerò”!
E – aqui eu subi aos céus! – não é que se me pôs a cantar, com a sua puríssima voz, incólume, pois assim me soou ao telefone, o início da ária. Piangerò! Piangerò, la sorte mia!, da ópera Giulio Cesare?
Quis ficar como Ricardo Reis. Emudeci! Quanto mais aquilo durasse, melhor, qualquer ruído meu poderia pôr fim à magia. Foi cerca de um minuto, deixei-a recordar-se, ficar outra vez cheia de música.
Foi lindo! Nunca mais esquecerei.