Óperas houve que tiveram em São Carlos récitas de antologia — daquelas que, gravadas, poderiam provar a qualquer extra-terrestre o que é ópera! E não estou apenas a recordar a muito badalada — com razão! — edição de La traviata de 1958 com Maria Callas. Muito pelo contrário; houve centenas e centenas de récitas absolutamente fora-de-série cantadas no palco de São Carlos e continuará a haver.
A ópera La gazza ladra, embora Rossini tenha sido um dos compositores mais amados e cantados por cá, não teve, porém, edições daquelas de cortar o fôlego. O título estreou em Lisboa em dezembro de 1819 com Carolina Massei (Ninetta), Luigi Mari (Giannetto), e Ercole Fasciotti (Fernando). Depois, tivemos várias (não muitas) edições habitadas por vozes que quase se esgotaram no seu tempo: Adelaide Dalmani-Naldi, Paolina Sicard e Castellan foram Ninetta; Luigi Ravaglia foi Gianetto; Filippo Spada foi Fabrizio; enfim, Stefano Valesi foi Fernando.
A última edição em São Carlos antes daquela que agora vamos poder ouvir deu-se há mais de século e meio — em fevereiro de 1855, mais concretamente — e assinalou-se pela presença de uma das maiores cantoras da história como intérprete de Ninetta. Falo de Marietta Alboni, de quem Walt Whitman escreveu: “Alboni had a big influence on me, on Leaves of Grass; without her, there would be no Leaves of Grass”. Bastaria isto para Alboni ser imortal!
Nascida a 6 de março de 1823, a cantora estudou com vários professores antes de se entregar em Bolonha aos ensinamentos de Domenico Mombelli (famosíssimo cantor e professor) e depois aos de Rossini — o compositor ficou de tal maneira maravilhado com a voz dela que lhe deu aulas de graça durante três anos.
A Alboni estreou-se, pois, preparadíssima, em 1842 no Teatro Comunale de Bolonha. O Scala foi conquistado pouco tempo depois e aí obteve enormes êxitos em Le siège de Corinthe, La favorite, Norma ou L’ebrea (a de Pacini). Esteve também festejadíssima em São Petersburgo na temporada de 1844-45, onde o seu Arsacce em Semiramide causou furor. Em 1847 foi convidada para cantar em Londres, na Royal Italian Opera em Covent Garden, este mesmo papel rossiniano. No célebre teatro londrino Alboni teve um desempenho que ficou na história: em 1847, durante representações da ópera Ernani de Verdi, tanto o barítono titular como o substituto adoeceram. No problem, quando se tem uma Alboni no teatro. A cantora subiu à cena vestida de Don Carlo e cantou o principal papel de barítono perante um público enlouquecido. Em 1868 Marietta Alboni cantou ainda no funeral de Rossini.
A cantora esteve em São Carlos numa única temporada, a de 1854/55. Cumpre assinalar, antes de dar a lista das actuações de Alboni no nosso teatro (e prolongando o maravilhamento que decerto causou a notícia do Ernani em Londres a quem disso não tinha conhecimento), que Marietta Alboni não se integra em nenhuma das características vocais conhecidas, apesar do século XIX ter tido exemplos absolutamente assombrosos de cantores capazes de ultrapassarem barreiras de repertórios, estilos ou categorias vocais.
Marietta Alboni exagerava! Senão, vejamos. A cantora por cá (digo São Carlos, pois ela apresentou-se ainda nas temporadas íntimas organizadas pelo Conde de Farrobo no seu Teatro das Laranjeiras) ultrapassou todos os “limites da decência”. Estreou-se a 31 de outubro de 1854 com La cenerentola e depois foi um desfiar de títulos: La favorite; La sonnambula; Il trovatore; Anna Bolena; La fille du régiment; Il barbiere di Siviglia; La gazza ladra; Semiramide. Despediu-se do São Carlos, para nunca mais regressar, na noite de 17 de abril de 1855 cantando La fille du régiment e, dado que era a sua Noite de Despedida e de Benefício, cantou como extra, depois do pano baixar sobre o último acto de La fille, o rondò final de La cenerentola (“Non più mesta…”) e … a “Casta diva” da Norma de Bellini.
Atente-se em várias aspectos: Alboni em São Carlos cantou papeis que abrangeram extensões de soprano coloratura a contralto. Como contralto, foi Cenerentola, favorite, barbiere, Semiramide, mas como soprano foi Amina em La sonnambula, Leonora de Il trovatore (ópera em que cantava também Azucena), Anna em Bolena (onde também cantava Seymour), Marie em La fille, Ninetta em La gazza.
Coisas de outros tempos, tempos em que grandes e inexcedíveis estrelas mundiais permaneciam em Lisboa por meses seguidos — Alboni esteve de finais de outubro de 1854 a meados de abril do ano seguinte, cerca de cinco meses e meio.