Era o dia 1 de Outubro de 2001 e eu dirigia-me de táxi para os estúdios nas Amoreiras, de onde iria apresentar o programa radiofónico intitulado Ritornello.
Um programa que, confesso, eu planeara normal, estruturado com trechos “clássicos” escolhidos para o dia, tais como o lied de Schubert An Die Musik, a Ode para o Dia de Santa Cecília, o delicioso If music be the food of love, de Purcell, e outros assim. Só que, tendo saído do Chiado minutos antes, ao descer a Calçada de São Francisco comecei a sentir uma comichão dentro do cérebro. O primeiro Dia Mundial da Música de um novo Milénio ser assim tão plácido? Quando estas comichões me acontecem a coisa está mal, eu sei. É sinal de que algo não vai resultar. Costumo então trocar os planos à vida. Mas … àquela hora? Às 17h30? Para um programa em directo com início às 18h10? O desconforto interior já estava plenamente instalado por alturas do Rossio.
Tive então um dos meus repentes, peguei no telemóvel, liguei a Birgit Nilsson e pensei: Se ela atender, vai mesmo ser outro programa! Nos Restauradores:
– Yeeeees?
Baque! Aquele timbre! No meu telemóvel!
A Birgit Nilsson! A lendária cantora considerada por muitos (entre os quais me incluo) como uma das maiores intérpretes líricas do século XX e da história, a suprema intérprete de Wagner, Strauss e Puccini , compositores a quem a sua voz de maleabilíssimo aço conferiu leituras insuspeitadas. Perguntei-lhe então respeitosa e timidamente se ela se importaria de dar um depoimento em directo acerca da Música, do horror (o 11 de Setembro ocorrera havia menos de um mês), da carreira…
Logo ela, muito airosa:
– Are you ready?
Expliquei-lhe então, apavorado com a ideia de um retrocesso, que só daí a cerca de trinta, quarenta minutos é que estaríamos prontos a entrar no ar.
– All right! Call me back! Bye-bye!
Assim foi! Cerca das 18h30 lá tínhamos nós Birgit Nilsson a falar para Portugal. A mensagem para o Dia Mundial da Música desse ano foi clara e simples:
– Acredito absolutamente que a Música pode ajudar a salvar a Humanidade e acredito também que ela pode ajudar a tornar as nações mais fraternas. Só existem duas coisas: a música e o amor!
Birgit Nilsson, uma mulher cujos feitos vocais assombrosos já entraram nas lendas da lírica, esteve em Portugal em três ocasiões: em 1958 como Isolde; em 1959 como Brünnhilde de A Valquíria e em 1976 como Brünnhilde de O Crepúsculo dos Deuses. Nos alvores da grande carreira internacional e no início da curva final da mesma, portanto.
Nilsson falou de Lisboa – e até de presentes que aqui lhe ofereceram. Recordava perfeitamente o nosso teatro:
– Recordo perfeitamente Lisboa e o Teatro de São Carlos. E com que emoção! Que bela cidade! Que belo teatro! Nunca me esquecerei da minha primeira visita a Portugal, pois o director do São Carlos na época ofereceu-me, após as récitas de Tristão e Isolda, uma taça de prata com inscrições que referem o teatro. Eu chegara de Barcelona, onde me tinham oferecido uma medalha. O dr. Figueiredo [pronunciado Figuéiredo] soube disso e, não tendo nenhuma medalha para me dar, ofereceu-me esta taça maravilhosa que naturalmente ainda conservo em minha casa e que prefiro à medalha, pois sirvo-me dela e vejo-a diariamente. As medalhas só se usam de vez em quando, não é?
Birgit Nilssom para ser mito não poderia ter cingido a sua carreira a Lisboa (até à data, que eu saiba, apenas Hermínia Silva conseguiu o feito de ser universal e exclusivamente lisboeta). A nossa cidade foi um local de passagem (muito ocasional) em percursos mais regulares e faustosos que levaram a cantora ao Met de Nova-Iorque, a Bayreuth, à Staatsoper de Viena, ao Covent Garden de Londres, ao Bolshoi de Moscovo. Nestas andanças planetárias houve, obviamente, cidades preferidas. Viena foi uma delas:
– Cantei imenso em Viena durante vinte e oito anos! É muito tempo! Ia lá todos os anos, Gostava da atmosfera que lá se vivia, adorava a Staatsoper. Também gostava de outros teatros mas Viena, sabe, era quase como a minha casa. Cantei lá imenso!
Birgit Nilsson foi rainha absoluta em urbes imensas onde os fans assaltam sem piedade os grandes artistas ambulantes:
– É maravilhoso termos admiradores, mas alguns deles podem tornar-se muito pouco confortáveis, sabe? A maioria dos admiradores e dos fans é verdadeiramente maravilhosa, mas já deparei com várias situações muito desagradáveis. Gosto, porém, de esquecê-las!
Falando de fans e das suas tropelias era obrigatório virem à baila as chamadas gravações pirata. O coração de Birgit Nilson, aqui, balançou:
– Gravações pirata!… Bem, foram um pouco longe demais e já ninguém os consegue parar. Quer dizer, quando esses registos são bem feitos, ainda se aceitam; mas eu já ouvi gravações que são pura e simplesmente horríveis, feitas por alguém sentado algures, com uma pequenina máquina nas mãos, ou então captadas em condições horríveis através da rádio. Só sei que o resultado é pavoroso. Por mim tudo bem, se a gravação for bem feita e realizada com profissionalismo.
A carreira de Birgit Nilsson foi alta, longa e variada. Teve, de facto, a felicidade e a oportunidade de trabalhar nos maiores palcos líricos do mundo inserida nos mais luxuosos elencos e sendo regularmente dirigida pelos mais famosos maestros do planeta: Böhm, von Karajan, Klemperer, Solti, Leinsdorf, Maazel, Kubelik e muitos, muitos mais.
Como conseguiu ela lidar com – e aceitar – visões tão díspares do fenómeno musical?
– Todos os maestros me deram imenso, mas todos eram diferentes – e era precisamente por serem diferentes que podíamos aprender mais. Todos eles eram maravilhosos, de uma maneira ou de outra, e é difícil eleger um de entre todos eles. Um dos primeiros – e estamos apenas a falar dos famosos! – foi, é claro, Fritz Busch, que foi como um pai para mim. Ele era maravilhoso!
As possibilidades da voz de Nilsson eram miticamente infinitas e os seus feitos vocais considerados heróicos. Ora, ela gostava de provar que mitos e heróis são fenómenos actuantes: numa ocasião, depois de cantar a Isolde, fechou-se no camarim do célebre maestro Karl Böhm, que tinha acabado de a dirigir, e atirou-lhe com uma das árias da rainha da Noite. Böhm ficou afanado e Nilsson … riu-se e continuou a rir-se da história pelos anos fora.
Parece, porém, que o casamento entre ela e Mozart deparou com algumas sombras:
– Mozart … eu admiro-o muitíssimo, adoro-o! O que se passa é que ele não gosta da minha voz. Não casam um com o outro. A minha voz é um bocado grande demais para ele.
(Isto dizia ela, porque eu não noto nada – e juro que há anos que ouço cuidadosamente as suas duas gravações de Donn Anna. Esforcei-me, esforcei-me, mas … nada!)
Nilsson estabeleceu depois relações com outros compositores.
– Podemos cantar Puccini com a voz toda, o que o torna mais fácil para mim. Tudo depende da voz que temos e Puccini torna-se mais fácil quando temos uma voz wagneriana. Verdi está mais do lado de Mozart, temos de o cantar com uma voz mais contida. Eu penso assim.
Como Nilsson me falou de Verdi era obrigatório vir à baila a ópera Un ballo in maschera, que ela gravou com Carlo Bergonzi e cantou em várias cidades. A “obrigatoriedade” advém do facto de Verdi na sua original ideia para esta ópera se ter baseado na história verídica do assassinato de Gustavo III num baile da Corte, em Estocolmo. Depois, por motivos de censura, o local de acção teve de ser mudado para Boston e o Rei sueco despromovido a Governador. Birgit Nilsson cantou Un ballo precisamente na Ópera Real de Estocolmo (Kungliga Teatern) numa encenação de Göran Gentele. Este, querendo seguir a ideia original verdiana, alicerçou a sua produção numa investigação histórica a cargo de Erik Lindegren.
Nada disto sensibilizou Birgit Nilsson! É que Gentele, querendo espelhar a real homossexualidade do monarca, resolveu colocar em cena um Gustavo III efeminado, mais interessado no pajem Oscar do que em Amelia. Para azedar a coisa, a produção era cantada em sueco:
– Não gostei da encenação na Ópera Real de Estocolmo porque apresentava o nosso rei Gustavo III como um ser muito efeminado. Ora, um Riccardo efeminado não se enquadra na ópera Un ballo in maschera, porque o amor ali criado por Verdi é real e é excitante, é vivido por pessoas que se amam realmente e não platonicamente. É por isso que nunca gostei dessa produção. Também não gostei de a cantar na tradução sueca – a cantilena verdiana ficava completamente arruinada!
Aqui estava um óptimo ensejo para saber se as vozes têm passaporte:
– Todos os cantores nórdicos têm o país na sua voz! Temos sons completamente diferentes dos sons dos italianos, ou do dos ingleses. Todos os países têm o seu som característico. Uma voz mediterrânica, por exemplo, pode ser imediatamente reconhecida. O mesmo acontece com uma voz nórdica, ou com uma voz alemã. Também consigo reconhecer imediatamente uma voz inglesa. Todos os cantores transportam os seus países nas respectivas vozes. Bem, as coisas agora estão a ficar um pouco mais difíceis de captar!
Birgit Nilsson é uma mulher de pele, de contacto, de emoções e talvez por isso a Tosca lhe fique tão bem. A cantora tem uma visão muito focada do personagem:
– Tosca é uma prima-donna, mas não creio que isso seja o mais importante. Ela é uma mulher apaixonada e é esse o fulcro da ópera. Não interessa assim tanto que ela seja ou não uma prima-donna, uma mulher famosa. Creio que o amor, o ciúme e todos os seus sentimentos são o mais importante. Tosca tem uma música fantástica, tem um libreto fantástico, tem tudo… Quem poderá não gostar? Eu gosto mais da Tosca do que da Turandot, obviamente.
E mais não quis explicar desta preferência. Aproveitei a oportunidade para tentar saber algo acerca das grandes produções da derradeira ópera de Puccini em que Birgit Nilsson participou como titular. Recordei, por exemplo, a produção desenhada por Cecil Beaton, consagradíssimo hollywoodiano, para o Met de Nova-Iorque em 1961. Percebeu-se logo, mas logo, que aquilo não lhe agradou:
– Nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnão … particularmente . Já vi produções mais bonitas do que a de Beaton.
Nesse primeiro ano de um Milénio que já não seria o seu como cantora, pedi a Birgit Nilsson que me desse a sua visão acerca do panorama lírico que via florescer à sua volta:
– É difícil responder a essa questão em poucas palavras. O mundo da ópera está presentemente a viver um período um pouco assustador: já não temos tradições, todas as óperas de repertório estão a ser encenadas em estilo contemporâneo… tudo isto porque se julga que assim se impressiona a juventude! Eu não penso assim, pois creio não ser esse o problema. As gentes da ópera – inclusivamente os directores dos teatros – parece que estão com medo delas próprias.
Como ponto final, uma mensagem aos mais jovens:
– Desejo a todos os jovens cantores portugueses montes de amor e de sorte! Dou-lhes um conselho: recordem sempre que nada se consegue sem muitíssimo trabalho. Trabalho! Trabalho! Trabalho! E sorte! É preciso ter sorte, para podermos conhecer as pessoas certas nos momentos certos.