Richard Strauss nos Diários de Thomas Mann

Richard Strauss nos Diários de Thomas Mann

Já foi por demais escalpelizada a ligação de Richard Strauss ao nazismo: os altos cargos e honrarias que este conferiu ao compositor, bem como, mais tarde,  a quase prisão domiciliária a que o confinou.

Strauss foi violentamente atacado após o final da guerra, explicou-se e foi completamente ilibado, por um Tribunal Superior, de simpatias para com o regime. Permaneceu, contudo, naturalmente,  persona non grata para todos aqueles que tiveram a coragem ou a possibilidade de  fugir da barbárie, como Klemperer, Bruno Walter, Arnold Schoenberg, e  muitos outros.

Thomas Mann foi um deles. O escritor nunca perdoou a Strauss o facto de este ter sido um dos signatários do protesto de “Munique, cidade de Richard Wagner” (publicado a 16 de Abril de 1933 no Münchner Neusten Nachrichten e difundido pela rádio) contra o estudo Sofrimento e grandeza de Richard Wagner (que seria, curiosamente, a última obra de Mann editada na Alemanha antes de 1946). Esta tomada de posição directa contra o romancista foi assinada por funcionários, compositores e escritores alemães, teve no maestro Hans Knappertsbuch um dos iniciadores e foi subscrita por Richard Strauss. Recorde-se que menos de um mês depois, a 10 de Maio, decorreria o infame auto-de-fé no qual foram queimadas as obras de Thomas Mann, entre muitas outras.

Nos diários do grande escritor há várias referências a Richard Strauss, que se estendem por vários decénios. Serão talvez interessantes de seguir.

 

17 NOV 1920:   Ao jantar, os Walter. Ele tocou Verdi, Rossini, La bohème, Lohengrin, Rubinstein, Tchaikovski, Chopin. Gostei muito da música. Verdi, uma fonte primitiva, parece por vezes alemão em comparação com Puccini. (…) Falou-se por acaso do motivo das quintas da Salomé de Strauss. Veio a constatar-se que este o retirou da Sinfonia Nº 1 de [Bruno] Walter, não impressa, que o autor lhe tocou em Viena recolhendo os seus aplausos. Um pormenor íntimo da história da arte.

 

4 OUT 1933: Ontem fomos a casa dos Reiff, onde decorreu um serão musical depois do concerto [Adolf] Busch, homem insólito e simpático, completamente oposto a toda a estupidez hitleriana, separado da Alemanha sendo o “violinista alemão por excelência”. O seu desprezo por Richard Strauss, cuja música, é, segundo ele, correspondendo ao carácter, uma merda superficial. E Pitzner? – “Meu Deus, mesmo assim prefiro Strauss!”

 

2 MAI 1934: Ouvimos, passando pelo Staadttheater, uma parte da récita de Salomé – à qual deveríamos ter assistido na íntegra com Strauss no camarote de Reiff. Incomodou-me a superficialidade, o carácter desactualizado, a estúpida frieza desta obra falhada, o seu esteticismo burguês de antes da guerra. Esse Strauss, esse produto ingénuo do Império não teria envelhecido mais do que eu? (…) Ele é estúpido e miserável por colocar a sua glória ao serviço do III Reich e este último explora-o de um modo igualmente estúpido e miserável.

O judeu Hoffmanstahl escreveu textos para ele. Presentemente, ele compõe sobre um libreto do judeu Zweig.

 

– 19 MAI 1934: Richard Strauss perguntou por nós e acha uma pena que eu não possa viver na Alemanha. Ninguém tem nada contra mim. – “Mas o protesto?” – Bem, sim, foi uma coisa um pouco precipitada”

 

14 DEZ 1934: O papel mais miserável é representado por Richard Strauss, que enviou a Goebbels um telegrama entusiasta com “Heil Hitler” para felicitar essa goela mentirosa pelo seu “discurso sobre a cultura”.

 

14 JUL 1935: Notícia dada por Zweig de que Richard Strauss renunciou a todas as suas funções. Boa coisa.

 

– 18 JUN 1939: Richard Strauss, com 75 anos, no dia a seguir à representação de gala da sua última ópera em Viena, almoçou com Hitler, que tinha vindo de avião.

 

– 1 FEV 1941: Ouvi Uma Vida de Herói sob a direcção de Toscanini. É muito alemão, muito hitleriano, trivial, brutal, refinado, “gigantesco”, celebração egocêntrica com toque revolucionário.

 

– 19 FEV 1942: Jantar e depois ida ao concerto de Walter. Camarote. Peça religiosa de um inglês para orquestra de cordas; Kindertotenlieder de Mahler; notável interpretação da 4ª Sinfonia de Tchaikovski. Emoção dos Walter por causa de um protesto de Erika , publicado no New York Times, contra a execução das obras de Richard Strauss. Eu dou-lhe razão.

 

– 14 JUL 1946: À noite, música de Mahler. O orientalismo n’O Canto da Terra e em Salomé. Nesta última o esteticismo é insuportável. Em Mahler, belezas românticas a par de audácias que pertencem à geração seguinte.

 

– 14 MAR 1948: À noite ouvi Don Juan de Strauss. É talvez o que ele fez de melhor, mas está cheio de pormenores vazios.

 

– 18 DEZ 1949: No concerto da noite ouvi uma suite retirada de O Cavaleiro da Rosa. É, mesmo assim, uma música extremamente agradável.

 

– 21 AGO 1952: De carro até ao Festspielhaus [Salzburgo]. Bons lugares. Danae muito bem posta em cena e magnificamente representada e cantada, mas não é uma obra conseguida. O libreto de Gregor é mau, confuso e dificilmente compreensível. Ópera pomposa, com toques de ligeireza como a sonhava Hoffmasntahl. Muito longa e fatigante.