Com a próxima apresentação da ópera La gazza ladra de Rossini, não consigo deixar de pensar em Stendhal, o ser humano que, a meu ver, mais brilhantemente escreveu sobre o compositor.
O romancista deixou-nos na sua obra provas bastantes e irrefutáveis da sua profunda, inesgotável e pessoalíssima apreciação da produção de Rossini. Essa obra literária é, a meu ver, de obrigatória leitura para quem queira saber algo de profundo sobre o autor de O barbeiro de Sevilha. O escritor francês conseguiu viver intensamente — mais do que captar! — o ambiente conturbado, frenético e festivo da época em que a obra do compositor de Pesaro se instalou na Europa e a conquistou impetuosamente.
Só que … Stendhal era um grande mentiroso! Compulsivo, mesmo. Há que ter com ele o maior cuidado! Constatar-se-á, no entanto, que essa tendência alucinante para a mentira, para a ocultação de factos, para as alterações da realidade, constituiu um verdadeiro apetrecho artístico. Stephan Zweig, num notável ensaio que dedicou ao autor de Le Rouge et le Noir, aponta essa característica como uma das mais importantes da personalidade artística e humana de Stendhal. Escreve ele: É justamente à sua ciência da dissimulação, à sua técnica da mentira que Stendhal deve a sua mestria em revelar a verdade.
Ou ainda: Poucos escritores mentiram tanto e se comprazeram em mistificar o mundo como Stendhal; poucos disseram melhor a verdade e com mais profundidade do que ele.
Ou ainda: Em Stendhal qualquer afirmação só pode ser aceite com a maior das reservas e devemos desconfiar das suas cartas, de que ele forja sistematicamente as datas.
Para terminar: Stendhal gosta de mentir, mesmo sem razão aparente, unicamente para se tornar interessante e para esconder a sua verdadeira natureza.
O que terá tudo isto a ver com La gazza ladra de Rossini?
É que Stendhal passou a vida a ouvir ópera e a deliciar-se com ela. Isso está mais do que provado nas Notas de Um Diletante (onde estão compilados artigos sobre espectáculos escritos para o Journal de Paris entre Setembro de 1824 e junho de 1827) e na Vida de Rossini (redigida entre Junho de 1821 e novembro de 1823), esta última com um título já de si enganador, pois não se trata bem de uma biografia, mas antes de um alucinado mergulho na mensagem de um criador através das suas obras. É precisamente nestes relatos que poderemos encontrar algumas das mais demenciais mentiras do escritor.
Darei alguns exemplos.
Diz-nos Rossini na sua apreciação à ópera Mosè:
Estávamos em Nápoles quando nos anunciaram o Mosè — um assunto sacro no Teatro San Carlo. Confesso que me encaminhei para o teatro com grandes desconfianças acerca das pragas do Egipto. Cheguei, pois, ao San Carlo…
Será?
Stendhal não poderia ter assistido a essa estreia, que ocorreu a 5 de março de 1818 em Nápoles. De 1 de janeiro a 1 de abril desse ano o escritor esteve em Milão e a 2 de abril partiu para França, onde permaneceu até 11 de maio.
Noutro relato, Stendhal escreve:
Ouvi pela primeira vez La cenerentola em Trieste divinamente cantada por Madame Pasta. Não senti prazer algum, apesar do talento dos artistas e do entusiasmo do público. Nesse primeiro dia, julguei-me doente; nas récitas seguintes, que me deixaram gelado no meio de um público entusiasmado, acreditei que a minha infelicidade era um acidente pessoal.
Será?
Nesta data (1820) Stendhal esteve em Milão. O escritor vira, de facto, La cenerentola na capital lombarda em 1817 e em Florença no ano seguinte. Mas sabia que Giuditta Pasta — que ele conhecia pessoalmente — cantava este papel desde 1818 e que se apresentara com ele com grande sucesso em Trieste em janeiro de 1820.
Outro exemplo ainda, desta vez a propósito da ópera La donna del lago:
Uma vez, vi Rossini ficar incomodado com os assobios. Foi na primeira representação de La Donna del lago, ópera baseada num mau poema de Walter Scott. Nesse dia as primeiras impressões foram de prazer. O cenário de abertura que representava um lago solitário e selvagem do norte da Escócia (…)era uma obra prima. (…) Mlle. Colbran cantou mito bem a sua primeira ária. O público sentia uma enorme vontade de patear, mas não tinha como.
Será?
A ópera La donna del lago foi estreada no San Carlo de Nápoles a 24 outubro de 1819; contudo, apesar de nos descrever em pormenor os cenários, apesar de nos informar que o público estava descontente, apesar de relatar o bom estado vocal da Colbran … Stendhal não esteva presente. Ele deixara Paris a 14 de outubro desse ano e dirigira-se para Milão, onde permaneceu até ao fim de 1819.
Cereja em cima do bolo é o seu relato da ópera La gazza ladra.
Stendhal diz-nos que assistiu à estreia absoluta, que se deu no Scala de Milão em 31 de maio de 1817.
Mentira!
Ele saiu de Milão a 9 de abril desse ano e dirigiu-se a Paris, com paragens em Grenoble e em Troyes. Partiria da capital francesa para Inglaterra a 1 de agosto. Mas este suposto relato da estreia mundial é, embora ficcionado, um dos mais verdadeiros e extraordinários relatos de uma récita de ópera. Deixarei alguns aperitivos:
Que dizer da Abertura de La Gazza ladra? A introdução, com o tambor em destaque, confere-lhe uma realidade, se assim me posso exprimir, como eu jamais experimentara com outra música. Depois de terem aplaudido à vontade, de terem gritado e de terem feito o maior barulho possível durante quase cinco minutos, quando a força para gritar se esgotou, todos falavam com os vizinhos. As pessoas mais frias e mais idosas gritavam dos camarotes: O bello! O bello!, e repetiam a palavra vinte vezes. Ninguém se dirigia a ninguém, tinha-se perdido a noção de que havia vizinhos, todos se dirigiam a si mesmos.
A propósito do final do I Acto:
Mozart teria tornado esse finale atroz e insuportável, sublinhando o trágico das palavras.
Vejamos, assombrados, até onde Stendhal nos leva na “análise” desse finale:
(…) A razão filosófica dos sucessos loucos e frequentes a que assistimos para lá dos Alpes e nunca em França deve-se a que lá há mais calor nas almas. Um calor que se acumula pela poupança: em França, temos dez prazeres diferentes para alegrar as nossas noites; em Itália, há apenas um, a música.
Havia lágrimas e entusiasmo no final do 1º ato de La Donna del lago.
O que interessa verdadeiramente sublinhar é que Stendhal captou, como ninguém, o ambiente dos teatros, as idiossincrasias dos públicos, as vozes gloriosas, os ambientes políticos e sociais em que as obras de Rossini floresciam e iam sendo dadas a conhecer. Que bom seria que as jornalísticas verdades, as cientificidades, as doutas opiniões, as luminosas propostas, os programas inevitáveis que nos assaltam hoje quotidianamente a inteligência em jornais, revistas, conversas de café e outros meios de descomunicação estivessem recheados com mentiras destas.