Fernando Lopes-Graça e o Menino Jesus

Fernando Lopes-Graça e o Menino Jesus

Poucas pessoas exerceram tanta influência no gosto público como o Graça – um dos homens mais dedicadamente admirado e não “oficialmente”, claro, no seu tempo. Seja dito também, em louvor à verdade, que nunca pôs directamente essa influência ao serviço da sua glória e propaganda. E, em alguns domínios, conseguiu transformações notáveis como no da canção popular portuguesa, onde aniquilou de vez o sórdido sol-e-dó da canção à moda do Minho com zabumba substituindo-o pelas belas melodias bárbaras espalhadas pelos canários* através da televisão, da rádio e dos discos.

Afirme-se também que, em muitos casos, essa mudança não foi fácil, porque o Graça tinha um rival poderoso: o SNI e os Serões de Trabalhadores com vedetas de 3 ao vintém a berrarem canções absurdamente fáceis “harmonizadas à Americana” pelo Belo Marques.

Os canários começaram por ser um coro político fundado em 1945, para entoar as canções por ele compostas, um mês antes, na Casa do Pinhal do Senhor da Serra.

Estou a vê-lo com menos de trinta anos a ensaiar no sótão da casa do Largo da Trindade onde estava instalada a sede do MUD.

Desse grupo inicial faziam parte, se bem me recordo, algumas personagens hoje célebres, como o José Cardoso Pires e o Cesariny (este último, com grande vocação musical, chegou em certa altura a reger o coro).

E, durante esses anos, esse grupo andou pelos clubes populares a cantar As Papoilas e A Mãe Pobre – enquanto a Maria Barroso, verdadeira Musa da Resistência recitava versos dos “seus poetas” como ela sempre diz. Quando essas digressões se tornaram impossíveis, pela intromissão da PIDE, o Lopes-Graça resolveu, não sem várias resistências, dar outro conteúdo de propaganda ao coro: a da autêntica Canção Nacional. E, de um dia para o outro, esses simpáticos rapazes que cantavam o Não fiques para trás, ó companheiro e o Ó pastor que choras começaram a gemer loas lindíssimas à  Nossa Senhora e canções de romaria.

É um exemplo que merece realce – por ser raríssimo no nosso país esse sacrifício de convicções ideológicas em favor de ideologias adversas, mesmo com altura artística. Assim, por exemplo, apesar de ateu ou, pelo menos, agnóstico, o Lopes-Graça nunca hesitou em elevar às nuvens as belíssimas canções do Natal português.

Garanto-vos que já me tenho comovido, não direi até às lágrimas, mas até ao riso, quando ouço aqueles marmanjões do coro, todos, mais ou menos, com ideias consideradas subversivas, a curvarem-se diante do Menino Jesus e acariciá-lo com vozes de mãos doces. O Menino Jesus, a Virgem Maria, o São José e toda a Sagrada Família!

E ainda lhes chamam sectários!

Não, não são. São um exemplo vivo de tolerância e amor pela Arte.

4 de Janeiro de 1969

 

José Gomes Ferreira: Música … minha antiga companheira desde os ouvidos da infância

 

* nome pelo qual era familiarmente conhecido o Coro da Academia dos Amadores de Música.

 

Nos seus Concertos de Natal do ano passado – 2017 – o Coro do Teatro Nacional de São Carlos “actualizou”, uma vez mais, as belíssimas Canções de Graça de que fala o escritor. Como prova, eis uma imagem do programa!

Concerto de Natal de Pedrogão Grande