Poucas vozes foram tão amadas no planeta durante o século XX como a de Franco Corelli, que teve a sua carreira espalhada por três decénios, mais concretamente de 1951 a 1976. Chamaram-lhe “Príncipe dos Tenores”, num século em que apenas Caruso teve o título de Rei. O seu nome ficou essencialmente associado aos papéis para tenor spinto e dramático do repertório italiano oitocentista, embora também tivesse cultivado com igual fulgor grandes papéis franceses como Roméo ou Werther.
Franco Corelli foi universalmente celebrado pelo poder da sua voz, pelo registo agudo electrizante, pela clareza do timbre, pelo canto largo e apaixonado. A sua era, de facto, uma voz com inaudito poder, com agudos largos, francos, firmes, solares, como havia muito se não ouviam.
E como Corelli gostava de os lançar! Numa conversa telefónica que manteve comigo nos Anos 90, tendo-lhe eu perguntado qual o repertório preferido, a resposta foi significativa:
– O mais agudo, naturalmente!
Uma voz, pois, dada às alturas.
Voz que, ainda por cima, vinha embrulhada num pacote de músculos e de pele que levou o britânico John Barry Steane (1928/2011) agradecer a Deus o facto de Corelli não ter escolhido Hollywood para seu universo, em vez dos palcos de ópera. É que Corelli era o que se pode chamar uma estampa – sorriso aberto, corpo vertical. A prova de que poderia ter prosseguido uma carreira no ramo da imagem são as duas fotonovelas em que foi estrela masculina!
Também lhe perguntei o que achava ele de ter sido considerado um “sex symbol”:
– Bem, tem de se ter “le fisique du rôle”!
Numa outra conversa (mantida não comigo, mas com Sinigaglia) o tenor não era ainda mais claro, falando das récitas de La Vestale de Spontini que cantou em Milão encenada por Luchino Visconti:
–Visconti tinha-me ouvido meses antes em Roma na Norma.
Bem, eu deveria dizer “tinha-me visto”, em vez de “tinha-me ouvido” porque o que ele procurava era um atlético clássico, maravilhosamente escultural, que se parecesse com um gladiador ou como um general romano, para colocar ao lado de Callas.
Algumas almas femininas portuguesas, ainda apaixonadas, recordam que o tenor tinha em tão alta consideração a sua beleza física que gostava de a mostrar, aparecendo em tronco nu nos finais das récitas para receber os aplausos, quando o entusiasmo estava ao rubro. Bem, facto é que Fedora Barbieri lhe colou ao nome o epíteto de coscia d’oro (coxas de ouro!). Pois…
Nasceu Dario Franco Corelli em Ancona. Talvez daí a sua sempre confessada paixão pelo mar. Ingressou no Conservatório de Pesaro (cidade de Rossini, compositor em que nunca pegou), mas abandonou este estabelecimento de ensino depois de aí ter estudado com Rita Pavoni e tornou-se um autodidacta. Diria mais tarde que essa tal Pavoni quase lhe destruíra o registo agudo. Passou a referir-se aos professores de canto como “gente perigosa”, “praga dos cantores” e outros mimos destes. Ouviu então, para se preparar para a vida, as gravações de Caruso, Lauri-Volpi, Pertile, Gigli e estudou cuidadosamente a carreira de Mario Del Monaco, tenor que o precedeu alguns anos na glória. A evolução do canto no século XX – e a do canto tenoril em particular – era um assunto que o obcecava.
Não foi fácil para Corelli iniciar uma carreira de tenor naqueles tempos em que havia concorrentes de peso. O cantor sublinhou-me isso:
– Bem, de facto, desenvolvi a minha carreira sempre ao lado de Di Stefano e de Del Monaco. Recordo-os com imenso prazer, porque eram verdadeiramente grandes colegas. Ecco!
No Verão de 1951 Corelli venceu em Florença o Maggio Musicale, o que lhe valeu a estreia em Spoleto como Don José na Carmen. Em Novembro desse 1951 estreava-se na Opera di Roma como Manrico ao lado de Maria Caniglia. Na primeira metade desta década Roma seria um dos grandes centros das suas actuações, tendo ali cantado, entre outros papeis, o Romeo de Zandonai e o Pollione da Norma (com Callas). Enquanto em Roma, foi conquistando outros palcos como a Arena de Verona, a Staatsoper de Viena, o Covent Garden de Londres, a Ópera de San Francisco, a Staatsoper de Berlim, o San Carlo de Nápoles, enfim, o São Carlos de Lisboa!
O famoso Teatro alla Scala de Milão abriu-lhe as portas em 1954. Ali cantou o já referido Licinio de La vestale, mas também os principais papéis de tenor em Fedora, Il pirata, Poliuto, todas ao lado de Callas. Outro papel no Scala foi o de Dick Johnson na puccciniana La fanciulla del West.
Em 1957 Franco Corelli conheceu Loretta, que lhe foi pedir autógrafos. Casaram em 1958 e só a morte os viria a separar.
Para além do Scala, outros teatros mantiveram com Corelli uma relação privilegiada. O Met de Nova-Iorque foi um deles. Pode mesmo dizer-se que Corelli a partir de meados dos Anos 50 viu amarrada a sua carreira a estes dois teatros. O próprio cantor mo disse:
– Estou indubitavelmente muito ligado a dois teatros – ao teatro alla Scala e ao Met, onde trabalhei nos últimos 25 anos.
Corelli debutou no Met em janeiro de 1961 como Manrico em Il trovatore. Foi uma produção gloriosa, daquelas históricas, pois nela se assinalou também a estreia naquele palco da norte-americana Leontyne Price.
Curiosamente, no ano seguinte, também com a ópera Il trovatore, Corelli inaugurou a temporada do Scala ao lado da primeiríssima vez e depois famosa Azucena de Fiorenza Cossotto.
Nestas andanças líricas Corelli apresentou-se sempre ao lado da nata dos cantores de ópera do seu tempo:
– Tive sempre “partners” muito grandes. Começarei por nomear Tebaldi, Callas, Sutherland, Simionato, Nilsson. Sempre cantei com artistas deste nível. Com os melhores barítonos também. Em resumo, tive a felicidade de cantar sempre ao lado de grandes, grandes artistas.
No Met, Corelli cantaria até 1974 papéis italianos como Calaf, Cavaradossi, Maurizio, Ernani, Rodolfo, Edgardo, mas também os franceses Romeu e Werther.
A última aparição de Franco Corelli num palco de ópera deu-se em 1976 em Torre del Lago. Tinha 55 anos. Depois, tornou-se professor em Nova-Iorque, mas confessou-me que não gostava de ensinar:
– Se me está a perguntar se gosto de estar sentado a um piano ensinando outros a cantar … não gosto!
Franco Corelli morreu em Milão em 2003, com 82 anos. No final da vida lamentava o seu relativamente magro repertório e chegou mesmo a afirmar por diversas vezes que teria sido interessante ter cantado outras óperas.
O tenor deixou-nos inúmeras gravações que revelam a sua esplendorosa vocalidade. De todas elas confessou-me talvez preferir a Aida que gravou em 1967 ao lado de Birgit Nilson sob a direcção musical de Zubin Mehta:
– Penso sem dúvida que vocalmente foi essa uma das mais belas gravações de ópera que efectuei, porque aí consegui algo que Verdi tinha pedido: lançar o “trono vicino al sol” em “smorzando”. Isso saiu muito bem.
Coisas agradáveis!
Franco Corelli veio cantar a Portugal variadas vezes, no início e no fim da sua carreira. A cidade de Lisboa parece ter-lhe deixado boas recordações:
– Lisboa para mim era como passar um mês de férias! É algo de muito belo que eu e a minha mulher recordamos sempre.
Ainda hoje dizemos um ao outro: Vamos a Lisboa passar uma semana! Ainda hoje temos esta ideia.
Franco Corelli estreou-se em São Carlos em 1955 (Don José) e voltou em 1956 (Roméo). Em 1957 foi Andrea Chénier, Gabriele Adorno (em Simão Boccanegra) e, surpreendentemente, André Khovansky (em Kovantchina). Regressou em 1959 (Calaf e Manrico) e depois de um hiato de oito anos regressou em 1967 (Andrea Chénier). Despediu-se do Teatro de São Carlos em Março de 1973 (Cavaradossi e Don José).
Nesta derradeira Carmen lisboeta, dizem espectadores do tempo, ela (Viorica Cortez) cantava em francês e ele respondia em italiano (“ -C’est toi? -Son io!”). Creio que esta era já uma imagem de marca do nosso tenor, pois o livro Franco Corelli – prince of tenors de René Seghers expões uma carta de Shirley Verrett, a quem aconteceu o mesmo em Ancona.
Verrett, porém, afirma que isso era uma malandrice de Corelli.