Anton Raaf, baptizado a 6 de Maio de 1714 em Gelsdorf, perto de Bona, e falecido em Munique a 28 de maio de 1797, foi o primeiro intérprete mundial do papel titular da ópera Idomeneo, re di creta de Mozart. Considerado um dos maiores cantores do seu tempo, foi também uma das primeiras estrelas referenciadas na categoria de tenor.
Os seus estudos foram ao mais alto nível, dado que o eleitor de Colónia, Clemente Augusto, enviou-o em 1736 para trabalhar em Munique com Giovanni Battista Ferrandini e depois para Bolonha, para aperfeiçoar com o célebre Antonio Bernacchi a interpretação da opera seria. Nesta cidade italiana Raaff conheceu o Padre Martini de quem se tornou amigo. Apresentou-se em Veneza por estes anos, mas foi essencialmente na Alemanha que decorreram os primeiros tempos da sua carreira, ao serviço de vários príncipes e cortes.
Tendo regressado a Itália, Raaff cantou com bom acolhimento em cidades como Florença e Veneza e aí foi conquistando a reputação de grande tenor que levou a que começasse a ser regularmente convidado por importantes cortes e cidades europeias. A Madrid chegou em 1755 e aqui trabalhou com o celebérrimo Farinelli. Este aconselhou-o poucos anos depois a partir para Nápoles e aqui, durante a década de 60, Raaff depressa ganhou o estatuto de maior tenor do seu tempo (num tempo em que tenores não eram estrelas). Raaff parece mesmo ter adquirido (tal como Orfeo … ou Farinelli) propriedades divinas: o seu canto foi o único remédio eficaz contra a grande melancolia que assaltou a Princesa Belmonte-Pignatelli depois da morte do marido. A Princesa chorou imenso depois de ouvir Raaff cantar a ária Solitario bosco ombroso, de Rollo, e depois … curou-se.
Em 1770 o cantor regressou à Alemanha natal. Em 1777 Mozart, estando em Manheim, teve oportunidade de o ouvir em palco … e não gostou mesmo nada daquilo que ouviu. Mas, um ano depois, reencontrou-o em Paris, já gostou de o ouvir e ofereceu-lhe então uma ária que Raaff aceitou com muito agrado. Enfim, iniciou-se uma grande amizade. Mais tarde, o cantor e o Padre Martini uniriam esforços no sentido de influenciar o Eleitor a encomendar o Idomeneo ao jovem de Salzburgo. Conseguiram-no e a ópera foi depois criada mundialmente a 29 de janeiro de 1781 em Munique sob a direcção do compositor então com 25 anos.
Interessa-nos sobremaneira a carreira de Anton Raaff porque este tenor apresentou-se em Lisboa em 1755, poucos meses antes do terramoto que destruiu grande parte da cidade. Ele foi, de facto, convidado a participar na temporada inaugural da Ópera do Tejo ou Real Casa da Ópera, o faustoso teatro de corte desenhado por Bibbiena a desejo de D. José I. Para o elenco do teatro foram regiamente contratados alguns dos maiores artistas do tempo. Segundo o relato de Chevalier de Curtis, oficial francês que visitava Lisboa nesse ano de 1755, o teatro custava mais de 2 milhões de cruzeiros ao rei.
Raaf foi o intérprete titular de duas óperas apresentadas nesse palco, ambas com libreto de Pietro Metastasio e música do napolitano David Perez. Uma foi Alessandro dell’India, título com que foi inaugurado o teatro a 31 de março de 1755, por ocasião do 38º aniversário da Rainha D. Mariana Vitória. A outra foi La clemenza di Tito. Sabemos que foi oferecida ao tenor a quantia de 300$000.00, com adendos e inúmeros benefícios previdenciários. Ao compositor era oferecido o valor de 2:000$000.
Sabemos também que Raaff não cantou todas as récitas de La clemenza, tendo sido substituído a 29 de junho, e que D. José I foi generoso na despedida do cantor. Segundo uma carta de Filippo Acciauoli, então Núncio Apostólico em Lisboa, datada de 24 de Junho de 1755, o Rei: oltre il pagamento del promesso nell’epoca ha inviato a Raaff in dono una tabacchiera d’oro, un brillante di valore e una libbra e più di oro grezzo, come si cava della terra nelle Reali mine del Brasile”.
Cantores que, para além dos elevados cachets, ainda recebiam tabaqueiras de ouro, diamantes de valor e mais de uma libra em ouro do Brasil!
Anton Raaff deixou Lisboa em finais de Junho, rumo a Madrid. Ao ter sabido, na capital espanhola, do terremoto, não tenho dúvidas de que teria abençoado a decisão de ter partido de Portugal logo após ter terminado o seu contrato!
Anos depois, a 29 de Janeiro de 1781, seria ele o criador mundial do Idomeneo mozarteano. Também não tenho dúvidas de que no decorrer da amizade que uniu compositor e cantor não se tivesse aflorado o desastre de Lisboa, de que toda a Europa, aliás, falou.
Não consigo também deixar de pensar que a mais importante e trabalhosa ária do tenor na ópera ( Fuor del mar ho un mar in seno) é um verdadeiro indicativo da nossa alma. Qual, de facto, o português que fora do mar não sente a alma atormentada?