Integrado já inteiramente na vida lisboeta, […] comparecera em 1923 na estreia da peça Mar Alto, de António Ferro, no teatro de São Carlos, levada à cena pela Companhia Lucília Simões-Erico Braga. O nome de António Ferro era cartaz a chamar a atenção do restrito público simpatizante com as correntes modernistas e a provocar a suspeição e hostilidade das camadas mais vastas, desconfiadas de quaisquer movimentos renovadores. Foram estas que ocuparam o maior número de cadeiras e camarotes de São Carlos. António Ferro teve, assim, de enfrentar, com a audácia que não lhe faltava, uma plateia hostil. Habilmente, e porque a sua peça seria curta para encher o tempo do espectáculo, o autor e a Companhia fizeram anteceder a representação de Mar Alto por uma ligeira comédia em um acto de Pirandello. Tinham, com esse pretexto, como convidado de honra o Ministro de Itália. Mas nem Pirandello, nem o diplomata italiano foram escudo suficiente para António Ferro. Parte do público, ignorante de que a peça em cena ainda não era a do discutido autor português, lançou-se logo, com apartes e em pateada, ao ataque do dramaturgo siciliano. Nós estávamos ali, sem tomar partido, em expectativa benévola – como é de uso agora dizer-se – em relação a António Ferro e em expectativa interessada perante a batalha campal que se anunciava. Mas já não era esse o caso do Guilherme de Faria, poeta tradicionalista para quem, apesar da extrema juventude, o modernismo devia ser heresia. Por isso, quando uma personagem de Pirandello entrou em cena, com uma grande capa e panamá de oleado negro encharcados, em obediência à rubrica que indicava, no exterior, chuva a cântaros, o Guilherme, com voz de falsete, debruçado num camarote de 1ª, interrogou: “Constipou-se?”
Os inimigos de António Ferro desataram a espirrar. Os actores, sem se desconcertarem, mas sentindo a hostilidade da plateia, arrastaram como puderam, até final, o curto acto de Pirandello. Quando Mar Alto, após um breve intervalo, subiu à cena, já os ânimos se haviam azedado e parecia até já estar traçado o destino da peça. Não me recordo bem do entrecho desta. António Ferro exercia a crítica teatral no Diário de Notícias, com a simpatia humana que foi traço inconfundível da sua personalidade, mas com independência e até certa impertinência, que era feição da sua moça maneira de ser. Inevitavelmente criara inimigos que também ali estavam a ajustar contas com ele. O enredo da obra de teatro, o seu mérito não se debatiam ali. Mas eram pretextos para os apartes, para os dichotes que tornaram essa noite uma das mais tumultuosas da história acidentada do Teatro de São Carlos.
Lucília Simões, uma grande actriz, e Erico Braga, um actor de incontestáveis méritos a quem só tardiamente foi prestada justiça, marido e mulher na vida real e na peça, insultavam-se em pleno palco com epítetos que um e outro, a mulher de esmerada educação e o homem discreto e distinto de maneiras, nunca fora de cena profeririam. Mas os insultos faziam parte da representação, estavam bem claros no original e iam num crescendo, cujo fim não chegámos a conhecer, porque na plateia ergueu-se uma voz a completar o “tu és isto”, “tu és aquilo” com que Lucília e Erico se mimoseavam: “E o autor é uma besta!”
Foi um pandemónio. António Ferro naufragou naquele Mar Alto, em que se verificaram cenas absurdas de pugilato e a intervenção da Polícia. A representação ficou por ali e a autoridade encontrou na alteração da ordem pública e na ameaça de novas perturbações motivo para obrigar a peça a sair do cartaz, que nem uma noite aquecera.
Excerto de Memórias da minha vida e do meu tempo, de Joaquim Paço d’Arcos.