José Saramago … ainda mais próximo do Céu

José Saramago … ainda mais próximo do Céu

A música para Saramago começou antes dos Anos 50, década em que ele visitou pela primeira vez a nossa plateia por oferta de uma entrada por parte de Fernando Ávila. Numa outra conversa que mantive com o escritor ele contou-me dos tempos em que, antes desse gesto de simpatia, ia para o galinheiro.

É peculiar a maneira como por várias vezes José Saramago liga o Teatro de São Carlos ao Céu.

Gosto de música, como qualquer pessoa de bom gosto, e gosto desde sempre, desde que me conheço… não tanto desde que me conheço, mas, enfim…

A partir dos meus dezassete, dezoito anos comecei, imagine-se, a frequentar o Teatro de São Carlos. Como se eu tivesse tanto dinheiro assim para pagar uma assinatura! O que acontecia é que o meu pai conhecia um dos porteiros e este, quando a ópera estava mesmo a ponto de começar, deixava-me entrar para o galinheiro. Daí assisti a grandes espectáculos.

As palavras seguintes ganhariam muito mais força se pudessem ser agora acompanhadas pelo riso de alegria quase infantil com que foram lançadas:

Vi uma “Aida” completamente única no mundo. Não quero eu crer que se tenha feito alguma coisa de tão extraordinário como aquilo: era o Beniamino Gigli; era o Bechi; o Giulio Neri; a Maria Caniglia; e nada mais nada menos do que a Ebe Stignani. Que cantores! Que cantores!

Eu vi isso! Eu vi isso! É uma coisa absolutamente inesquecível.

Eu estava lá em cima no galinheiro e aquilo chegava-me como se fosse o Céu, ou a imagem que a gente fazia do Céu – um lugar onde se faz muita música, porque os anjos aparecem todos com flautas e coisas assim.

Era absolutamente extraordinário, extraordinário.

Eu acho que agora se despreza muito o “belcanto”, acham-no uma espécie de acrobacia vocal –  que também o era, mas era realmente aquilo a que se obrigavam grandes cantores e que talvez tenha obrigado à existência de grandes cantores.

 José Saramago estava consciente da grande diferença – principalmente que diz respeito à preparação teatral dos cantores – entre esses tempos das Caniglia e dos Bechi e os inícios do século XXI em que decorreu a conversa.

Apesar disso, lança uma verdadeira declaração de amor à voz.

 Enfim, todos conhecemos cantores que se põem para ali a cantar … e interpretar, nada. Agora penso que já não é tanto assim,  os cantores já têm aquilo a que poderíamos chamar escola teatral, mas houve um tempo em que eram umas estacas que se punham ali a cantar e que não faziam nada mais.

Bem, Gigli, Caniglia, Stignani, eram assim, eram assim realmente… Oh que grandes! Não tinham mais nada para dar do que a voz. Não tinham outra coisa para dar, e era imenso.

José Saramago também recorda alguns espectáculos de ópera no Coliseu dos Recreios:

Eram grandes espectáculos, os do Coliseu – tudo aquilo um pouco manhoso de cenários e tudo isso, mas a malta, a arraia-miúda que não podia ir a São Carlos, e que ia para a Geral, punha-se ali na ladeira de acesso, e quando aquilo abria disparava…

Cada um tinha a mania que sabia qual era o lugar de onde se ouvia melhor. Bem, eram infantilidades, mas bonitas infantilidades.

Recorda ainda particulares vozes do passado:

Há vozes, há timbres que são absolutamente inesquecíveis. Creio que hoje se canta bastante bem, em geral, mas a sensação que eu tenho (se calhar estou a ser injusto, estou a falar daquilo que não sei e se assim for peço desculpa) é de que não há grandes cantores. Claro, estava aí o Pavarotti, que era pau para toda a obra, não é? Cantava isto, aquilo e aqueloutro, tinha uma voz naturalmente privilegiada… o Placido Domingo, a Montserrat Caballé, tudo isso, mas são gente também já do passado.

Eu lembro-me provavelmente de cantores que não têm grande importância hoje, vistos no tempo em que nos encontramos nós. Eu recordo ouvir no Coliseu uma tal Marimi del Pozo que tinha uma voz muito bonita, tinha uma voz linda, depois desapareceu, não sei o que é que lhe aconteceu. E ela cantou o quê? Creio que foi o “Rigoletto”.

Se foi o “Rigoletto” que Saramago efectivamente ouviu , Marimi del Pozo cantou-o no Coliseu dos Recreios em três temporadas: 1944/45; 1945/46 e 1946/47.

Por falar do “Rigoletto”, há um momento, quando ele sabe que a filha está desonrada e jura vingar-se…

Quem fazia isso… não me lembro quem era, mas fazia-o com uma força que vinha do fundo do palco. Aquilo era uma coisa! A sala vinha abaixo com aplausos. Bem, isto tem que ver com sentimentos talvez superficiais, mas era um grande momento de euforia colectiva.

Regressemos às memórias de São Carlos.

Outro cantor de que me lembro é um baixo, Boris Christoff, que para além de ser um grande cantor, era um actor de primeira ordem. Quer dizer, ele, quando estava em silêncio, quando tinha de estar em silêncio porque a parte lho exigia ou, porque, enfim, havia outro a contracenar com ele, via-se que continuava a representar. Os seus silêncios, o gesto, o olhar, e tudo isso… Era uma qualidade a que, enfim, agora se chamaria uma mais-valia, um valor acrescentado, palavras que me causam erisipela. Era uma figura imponente, e com uma voz linda. Lembro-me de um “Boris Godunov” interpretado por ele.

Ele era búlgaro, não era?