Leon Tolstoi – E ópera é…

Leon Tolstoi – E ópera é…

Centenas de milhares de operários consomem a sua vida inteira em trabalhos pesados para satisfazerem a necessidade de arte por parte do público. Chega-se ao ponto de não existir nenhum outro ramo da actividade humana, salvo a guerra, em que se despenda uma quantidade tão grande de esforço nacional.

Todos os dias se sacrificam inúmeras vidas humanas à satisfação desta necessidade. Centenas de milhares de pessoas dedicam a vida inteira, desde a infância, a saber mover rapidamente pés e pernas, a golpear com rapidez as teclas de um piano, ou as cordas de um violino, a reproduzir o aspecto e a cor dos objectos, ou a subverter a ordem natural das frases e juntar a cada palavra outra palavra que com ela rime.

Estas pessoas, na sua maioria honradas e com capacidades naturais para se entregarem a actividades úteis, ficam absorvidas por estas ocupações especiais e embrutecedoras e convertem-se em chamados especialistas –  seres com inteligência mesquinha, inchados de vaidade, incapacitados de apreciarem as manifestações sérias da vida e incapazes de outra aptidão que não implique agitar rapidamente as pernas, as mãos ou a língua.

Recordo que um dia assisti à representação de uma ópera, umas dessas novas, grosseiras e vulgares obras que todos os teatros da Europa e da América se apressam a pôr em cena, para depois cairem para sempre no esquecimento.

Quando cheguei ao teatro tinha começado o I Acto. Para alcançar o meu lugar tive de passar pelos bastidores e cheguei,  através de escuros corredores, a um vasto local onde estavam diversas maquinarias que serviam para a mudança de cenários e de luzes. Aí, entre trevas e poeira, trabalhava uma multidão de operários. Um deles, pálido, desengonçado, vestido com uma blusa suja e com as mãos também sujas e calejadas pelo trabalho, com o aspecto de um desgraçado abatido pela fadiga, ralhava colérico com um colega quando eu passei. Fizeram-me depois subir para um espaço que rodeava a cena. Entre uma massa de cordas, argolas, madeiros, cortinas e cenários, vi agitarem-se à nossa volta dezenas ou quem sabe centenas de homens mascarados e disfarçados com trajes estranhos, sem contar com o elevado número de mulheres que, naturalmente, traziam o mínimo de roupa possível. Eram cantores, coristas, bailarinos e bailarinas que esperavam a sua vez.

[…]

Em cena apareceu uma procissão de índios que acompanhava uma recém-casada. Parece que os coitados tinham esquecido que de vez em quando tinham de levantar os braços em sinal de entusiasmo. “Asnos! Brutos! Idiotas! Porcos!” – mais de 40 vezes ouvi eu repetir tais palavras aos cantores e aos músicos.  Estes, física e moralmente deprimidos, aceitavam o ultraje sem nunca protestar.

Nada daquilo tinha a ver com costumes índios, nem se parecia com qualquer outro costume humano, exceptuando as óperas. Porque não há dúvida: na vida comum os homens não falam por meio de recitativos, nem se colocam a distâncias regulares, nem agitam os braços em cadência para demonstrarem as suas emoções.

Não creio, na verdade, que possa existir no mundo um espectáculo mais repugnante.

 

Excertos de O Que é a Arte?, escrito por Leon Tolstoi em 1880.

Quando completou 50 anos o escritor russo mergulhou numa intensa crise espiritual que o fez criticar duramente grande parte das instituições humanas, tais como a Igreja ou o Estado, e reflectir amargamente sobre a guerra, a revolução, a pena de morte. Durante esta crise – em que questionou o trabalho de cientistas, o progresso industrial e chegou ao ponto de desprezar o valor da Arte e da Literatura, que achava inúteis para unir o seres humanos – Tolstoi  opôs-se até à morte dos animais para fins alimentares.