LUSOS EM BAYREUTH – I

LUSOS EM BAYREUTH – I

LUSOS EM BAYREUTH – I

Não vou referir intérpretes portugueses que se tenham apresentado no Teatro de Bayreuth — foram vários, mas não são eles o alvo destas linhas. Vou, isso sim, falar de viajantes portugueses — músicos — que ali se deslocaram nos inícios do século passado e quiseram deixar escritas para a posteridade as emoções que a viagem lhes causou.
O Festival de Bayreuh passou a ser local de peregrinação europeia e mundial desde a sua inauguração em 1876. Floresceu então um conjunto de gente que considerou a obra wagneriana como o cume musical, artístico, filosófico, intelectual do planeta e da História. Assim, as deslocações à pequena cidade da Baviera aumentaram exponencialmente e relatos sobre essas idas pulularam. Aquilo era a modernidade! A mais conhecida destas publicações foi Le Voyage Artistique à Bayreuth, de Albert Lavignac (Professor do Conservatório de Paris), escrito em 1897.
Naturalmente, os portugueses não ficaram alheios a essas andanças wagnerianas e assim dois importantes vultos da nossa cultura musical assistiram ao Festival e sobre ele escreveram.
O primeiro deles foi Alexandre Rey Colaço (1854-1928), nascido em Tanger, distinto professor (dos príncipes D. Luis Filipe de Bragança e D. Manuel de Bragança, futuro D. Manuel II de Portugal), pianista e compositor. Estudou em Lisboa, Paris e Berlim onde, pelas extraordinárias aptidões e talento, foi convidado a ensinar piano na Escola dirigida pelo famoso violinista Joseph Joachim, amigo de Schumann e Brahms e grande intérprete das suas obras. A descendência de Alexandre teria lustrosa carreira nos palcos teatrais: a filha foi a atriz Amélia Rey Colaço e a neta a atriz Marianna Rey Monteiro.
O músico português fez publicar uma carta no Diário Ilustrado, cujo director era o seu amigo Agostinho de Campos, enviada de Munique a 16 de agosto de 1905. Atente-se que a estreia da Teatralogia só se daria em Lisboa, no Real Theatro de São Carlos, a 4 de Abril de 1909, quatro anos depois desta crónica bávara de Alexandre Rey Colaço.

O amphiteatro wagneriano acha-se situado do lado oeste da cidade de Munich. Meia hora de eléctrico.
(…)
Cheio de fanatismo, tomo todos os dias o caminho d’este templo ás 3 da tarde. Tardes cálidas, ceu azul, horizontes transparentes, – cascaenses! Misturo-me a uma massa compacta de peregrinos vindos de toda a parte, e que, como eu, na mesma devoção, se dirige comovida, silenciosa, solemne e recolhida a gozar d’uma delicia suprema, não terrestre: a audição dos “Mestersinger”, do “Rheingold”, da “Walkyria”, de “Siegfried”, do “Crepusculo dos Deuses”, regido pela batuta magica de Felix Mottl, e cantado por anjos e por demónios divinos!… A execução é digna do Paraiso; nada fizémos nós na terra para a merecer.
Não citarei a v. nomes de artistas. Nem v. se importa com isso, nem eles se importam com v. Ovações cá não as ha, nem chamadas, nem delirio, nem dós de peito provocadores, nem kikirikis obscenos! N’uma sala negra como a mais negra das noites, mil e quinhentos seres humanos, que não tossem, que não espirram, que não se abanam, que não aplaudem, fremem, choram, vivem Wagner, e … estalam no esplendido jardim do teatro, no intervallo de 40 minutos que separam os actos.
Irrupção de todas as línguas, de todas as exclamações, de todas as emoções até alli constrangidas; exposição de todas as bellezzas, de todas as elegancias, de todas as riquezas. Americanas majestosas, inglesas lyricas, francezas vestidas no “Paquin”, velhas pintadas, raparigas desbotadas, homens penteados “à la Cléo de Mérode”, outros ostentando a guedelha de Wotan; japonezes, italianos, hespanhoes, tangerinos…, dominando, já se vê, o elemento mais symphatico de todos: o allemão. Perfumes philadelphianos, estonteadores, enchem a atmosfera.
O genial Felix Mottl, que com tal sciencia e fervor penetra nas profundezas e mysterios wagnerianos, comunicando-os, também sabe infiltrar-se nas filigranas, graças e purezas do divino Mozart. O ciclo mozartiano terá logar em Setembro, no elegantíssimo “Residenz Theater”. Mas esse, não o gozarei eu. Outros prazeres me aguardam: o regresso á terra portugueza, aos braços dos meus, ao Monte Palmella, a “Monsalvat”. O presente de hoje será então o passado. A “moda da Rita” e o “Choradinho” virão balouçar-me de diferente modo, trazer-me-hão outros perfumes… “Il y a des fleurs partout: il faut savoir les cueillir” *.

* a phrase que aqui cito, e que é d’uma consoladora filosofia, foi-me dita há muitos anos em Berlim por Mme. Enole Mendelssohn, a admirável “musicienne”, que me honrou com a sua amizade.

Quem também escreveu do Festival, in loco, foi o pianista José Vianna da Motta. Outro Luso em Bayreuth!

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