MÁRIO MOREAU

MÁRIO MOREAU

O céu agrada-me pensar que é a memória daqueles em cujos corações enfiamos achas – Luis Miguel Nava

Conheci Mário Moreau quando entrei como profissional desta casa exercendo a actividade de assistente de encenação nos inícios dos Anos 80. Era ele então Director Geral do teatro.

Os poetas ensinaram-nos que as pessoas se recordam consoante as achas que deixam a arder no nosso coração. Mário Moreau deixou lenha suficiente para eu e Portugal o recordarmos por longuíssimos anos.

Uma das primeiras achas recebi-a logo nos primeiros anos do meu trabalho nesta casa. O alvoroço dessa época da minha juventude causou naturais pequenos distúrbios entre nós. Confesso que por razões que já nem recordo. O que recordo bem é que numa ocasião em que o meu pai esteve bastante doente Mário Moreau, alheio a ninharias, sabendo disso e fazendo parte do corpo clínico do Hospital de Santa Maria, não só logo se prontificou a manter-me sempre informado (e todos sabemos o quão precioso isso é em momentos destes) como passou a ir assiduamente à cabeceira de meu pai prestar apoio humano e científico.

Um combustível destes bastaria até ao fim da minha vida, obviamente, mas houve mais toros. Um deles teve a ver com a sua actividade como investigador e foi a publicação do monumental estudo sobre o teatro de São Carlos, dois volumes preciosos que esmiuçam a actividade desta casa desde a sua fundação em 1793 até à temporada do Bicentenário: O Teatro de S. Carlos — Dois Séculos De História. Antes da publicação desse trabalho, ninguém imagina o que era querer saber algo sobre factos do São Carlos. Em que ano cá dançou Margot Fonteyn? E que obras? Que peças representou Sarah Bernhardt? Que reis estiveram por cá? Quando se cantou a primeira obra de Verdi? Eram dias, semanas de procuras. Já havia é certo, um estudo de Fonseca Benevides nascido do mesmo amor a esta casa, mas esse só cobria basicamente o século XIX e quase metade da história do teatro estava, assim, por relatar. Agora, todas as perguntas acima formuladas se respondem em minutos consultando o livro do Dr. Mário Moreau.

Isto leva-me a uma outra história, esta passada na segunda metade dos Anos 90. Como autor de um programa de rádio existente então intitulado Ritornello, convidei o Dr. Mário Moreau para uma entrevista e recordo-me perfeitamente de ter aberto a conversa com um agradecimento em meu nome e no de Portugal pelo seu hercúleo trabalho. Era merecido, devido e sentido. No dia seguinte (nunca contei isto ao Dr. Moreau porque sei que estas coisas podem moer) a minha assistente da altura tinha deixado em cima da minha secretária uma ácida mensagem recebida de um ouvinte indignado: que eu só deveria ter agradecido em meu nome, porque não sou Presidente da República. Não vamos cair na estafada conversa de que em Portugal quem tem valor é perseguido; mas se Mário Moreau apanhou na vida com atitudes brilhantes como as do meu ouvinte de então não admira a ironia, por vezes azeda, com que ele nos deliciava também.

Outra acha, que explica traço de caracter. Fui convidado para a festa do seu 80º aniversário. Recordo que fui no carro de Álvaro Malta. Foi um dia lírico, dado que a casa do aniversariante estava pejada de cantores e gente ligada à ópera, obviamente. Profundamente reconhecido (sê-lo-ei eternamente) pelo seu trabalho em prol de todos aqueles que amam o São Carlos, decidi oferecer-lhe um item precioso das minhas colecções (mínimas, comparadas com as suas): uma rara e fantástica foto de Regina Pacini autografada. Fiquei tão feliz com a reacção de quase miúdo que ele teve! Senti no seu corpo o impulso dos pulos de alegria. Mas, logo de seguida, ficou muito sério e disse-me: “Jorge, sabe o que me está a oferecer? Isto é precioso. Prometo-lhe que não ficarei minimamente aborrecido se quiser reconsiderar. Isto é precioso!”. Era assim, Mário Moreau. A fotografia, como é óbvio, ficou exactamente no local onde ele a colocara.

A par do livro de São Carlos veio muito mais lenha!

Houve os também fundamentais volumes dedicados aos cantores portugueses em geral, onde são estudados, escalpelizados, numerados, arrumados, catalogados centenas de nomes e carreiras que poderiam ter irremediavelmente caído no esquecimento sem a documentação compilada por Moreau. Aos astros de primeiríssima grandeza – Luisa Todi, Maurício Bensaúde, Tomás Alcaide – Mário Moreau dedicou volumes solitários.

Outra recordação, esta para falar de uma acha que Mário Moreau também colocou no coração de José Saramago. Tendo eu combinado com o escritor uma entrevista que seria focada nos seus gostos musicais, espantei o autor d´O Memorial do Convento quando ele começou a querer falar de certos espectáculos que em novo tinha ouvido no velho Coliseu dos Recreios. O nome de certos intérpretes já lhe falhava, ao querer recordá-los passado mais de meio século. Mas eu estava salvo! Estava munido com outro precioso trabalho de investigação do Dr. Moreau, este dedicado ao Coliseu dos Recreios. Aqui, tal como no livro dedicado a São Carlos, também poderemos saber facilmente o que se ouviu ou viu naquela sala na noite de (ao calhar) 12 de Abril de 1965. Saramago ficou deliciado por eu saber que ele ouvira o Rigoletto com a Marimi del Pozzo; e que ouvira falar do Renato Gigli! O escritor não conhecia esse trabalho de Mário Moreau. Recordo que lho ofereci e que o vi em sua casa, em local de fácil maneio, anos depois da oferta.

O enorme amor de Mário Moreau por Puccini levou-o também a escrever um volume dedicado ao compositor.

Morreu aos 94 anos, bonita idade que nos permitiu desfrutar de uma gorda memória que ele transmitia sempre com alegria e saber.

Nunca esquecerei o seu olhar maroto.

R.I.P.

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