O soprano verdiano

O soprano verdiano

Tinha para mim, até há algum tempo, que o soprano verdiano era uma espécie de mulher muito concreta, com os pés bem assentes na terra: mulheres que sabem muito bem o que querem, sem se perderem em fantasias, com vozes gordas na sua maioria, com características spinto, algumas bem dramáticas. Considerava então Maria Callas (generalizando, é claro)  a suprema representante do espírito e da vocalidade verdianos.

O facto de esta cantora ter afirmado que o compositor que cantava com mais agrado era Bellini deveria ter-me desde logo alertado para que algo de “errado” havia naquele meu raciocínio, pois essa sua escolha clarificou-me que em confronto  com as heroínas bellinianas – verdadeiros vidrinhos ambulantes, sonhadoras, etéreas, profissionais do devaneio – o “concretismo” das heroínas verdianas assume proporções indesmentíveis.
Acontece também que comecei a ouvir, mais e mais, Renata Tebaldi nas grandes heroínas do compositor de Busseto (Aida, Leonoras – da Forza e de Il Trovatore – Elisabetta do Don Carlo, Desdemona, enfim, Giovanna d’Arco – sim, uma versão ao vivo de cair para o lado!) e comecei a achar estranho aquele som sonhador, como que suspenso num fil d’un soffio etesio, que ela emprestava a todas elas. A mulher parecia andar “drunfada”, fosse qual fosse o papel! Tempo depois do nascimento desta perplexidade, foi ela própria a descodificar-me a coisa, quando numa entrevista que me deu há uns anos, me disse que Puccini a obrigava a ter os pés assentes na terra, sendo que Verdi a fazia “partir”.

De heroínas puccinianas poder-se-á falar aqui noutra altura, mas esta frase de Tebaldi ajudou-me a clarificar o problema verdiano. É que depois foi só ir às partituras e constatar que a senhora estava mesmo certa naquela sua visão sonhadora e etérea. E porquê? Porque grande parte das heroínas verdianas são umas autênticas alienadas. Estão constantemente a sonhar com lugares outros, ou de sonho, ou de passado, ou de anseio, e nunca, mas nunca, estão contentes no espaço e no tempo em que lhes foi dado viver: ele é a Elvira do Ernani (“Ernani, involami”, ou “Per lande ignude ti seguirà il mio piè”, na mesma ária – e a felicidade com que ela canta isto!); ele é a Aida (“O cieli azzurri, o verdi prati, o patria mia”, etc.); ele é a Elisabetta do Don Carlo (“Fontainebleau!”, etc.); ele é a Leonora de Il trovatore (“D’amor sull’ali rosee”); ele é a Violetta de La Traviata (“Parigi noi lascieremo”); e outros exemplos que me não chegam agora à memória. E que existem.

Heroínas muito mais concretas são as de Donizetti (mesmo a doida da Lucia pega numa faca e espeta-a muito concretissimamente no seu noivo – imaginamos uma heroína verdiana nestes preparos?) ou as de Rossini, mas estas últimas escapam à galeria romântica, pois são mulheres ainda construídas na estética vocal dos finais de século XVIII.