No passado dia 10 de Março, o pianista Paulo Santiago ter-se-ia tornado um sexagenário, não o tivesse a morte colhido com apenas 34 anos, em fins de julho de 1992. Está agora a ser homenageado no Teatro Nacional de São Carlos.
Nenhum outro local seria mais apropriado, pois ele tinha uma verdadeira paixão pela música e pela ópera e também porque este teatro foi um dos auditórios portugueses que ele mais visitou e amou, um local onde ouviu centenas de récitas de ópera e concertos que ajudaram a construir a sua personalidade artística. O São Carlos foi, para além disso, palco de atuações suas e de momentos inesquecíveis na sua vida: recordo-me, por exemplo, do ensaio geral de Il Trovatore em 1981, a que eu e ele assistíamos — estávamos sentados numa coxia da plateia quando Fiorenza Cossotto surgiu no corredor, vestida e pintada de Azucena, e se sentou numa coxia precisamente situada à direita da nossa olhando para o palco. Cossotto viera ali ali para ouvir a cena do convento em que o marido, Ivo Vinco, que cantava Ferrando, tinha linhas de importância. O Paulo enterrou-se na cadeira. A voz de Cossotto, é necessário explicar, era uma das suas inabaláveis paixões. Ele viria, o que não lhe era de todo difícil, a conquistar também o coração da cantora. Ainda hoje, eu e o grande mezzo-soprano o recordamos quando por vezes falamos.
Paulo Santiago nasceu em Lisboa a 10 de março de 1958. Teve um percurso inicial semelhante ao da maior parte dos intérpretes portugueses da sua geração, com o ingresso no Conservatório Nacional. Estudou com Maria Cristina Pimentel, Tânia Achot, Sequeira Costa, a quem seguiu para os EUA. Neste país estudou com o pianista Leon Fleischer na Universidade do Kansas, onde viria tempo depois a lecionar.
Começou desde cedo a apresentar-se em recital em algumas das mais importantes instituições portuguesas (Fundação Calouste Gulbenkian, Teatro Nacional de São Carlos). Apresentou-se internacionalmente na Índia, em Macau, nos EUA, em várias cidades europeias. Algumas dessas apresentações foram alvo de gravação comercializável e uma das mais comoventes e conseguidas efetuou-se no Carnegie Hall de Nova-Iorque, num recital que foi gravado e posteriormente distribuído pelo jornal “Público”.
Devido a uma proximidade de vida e de amizade, fui testemunho dos gostos e preferências musicais do Paulo. Recordo (luxos da juventude!) a sua descoberta de algumas óperas verdianas, o seu incólume e nunca abandonado amor por Chopin, as paixões e a veneração por Bach, Beethoven ou Mozart, obviamente, os delírios com as vozes de Schwazkopf, Callas, Troyanos, Cossotto ou Amália Rodrigues. Um dos seus pianistas preferidos morreu também muito novo, praticamente com a sua idade – o romeno Dinu Lipati. Ileana Cotrubas, também romena, punha-o de rastos. As vezes que ouvimos entusiasmadíssimos o “Asrael, Asrael” de Pélleas et Mélisande! Quase tantas como Leontyne Price a cantar “Ch’il bel spogno di Doretta” de La rondine! Em relação a Cotrubas, recordo um jantar num restaurante na rua das Portas de Santo Antão, depois de uma récita cantada no Coliseu dos Recreios. Ileana Cotrubas, que acabara de ser a Charlotte para o Werther de Kraus, estava sentada na nossa mesa. A ementa da conversa foi variada: Callas; Lipatti; Mozart; Schwarzkopf; Puccini; sei lá eu que mais.
A presença dos Alunos da Escola Artística de Música do Conservatório Nacional nesta homenagem recorda também um dos locais onde Paulo Santiago lecionou e onde teve oportunidade de transmitir, embora por pouco – mas relevante! – tempo, o seu profundo saber e a sua técnica. O recital que os jovens intérpretes lhe vão oferecer em São Carlos vai realizar-se, curiosamente, no Salão Nobre do teatro, o local onde Paulo Santiago realizou o momento de música porventura mais planetariamente visto e ouvido da sua vida: quando tocou Chopin numa cena do filme Noites Brancas protagonizado por Mikhail Baryshnikov. No decorrer da obra há uma festa, filmada no Salão Nobre, e no decorrer da mesma ouve-se o Paulo tocar Chopin. O compositor que ele mais adorava!
Esta paixão por Chopin terá também a ver com a paixão de ambos pelo canto! Este compositor considerava, segundo o seu aluno Karasowwski, que a melhor maneira de conseguir a naturalidade de execução era ir ouvir com frequência os grandes cantores italianos, de quem se deveria imitar o estilo amplo e simples, bem como a liberdade. Se alguém houve que amasse simultaneamente a música de Chopin e os grandes cantores, esse alguém chamou-se Paulo Santiago.
O recital percorrerá uma infinidade de compositores e entre eles estão, obviamente, aqueles monstros sagrados incontornáveis que o Paulo venerava: Bach, Chopin, Beethoven (nunca esquecerei uma Waldstein que lhe ouvi em meados dos Anos 80), Mozart. Surgem também obras de Fauré e de Domenico Scarlatti, compositor que fazia tremer o Paulo, bem como todos os pianistas.
Tudo se terminará com a interpretação de trechos camerísticos. A música é, de facto, comunhão a variadíssimos níveis, inclusivamente o geracional, e Paulo Santiago sabia-o. Nós também, por isso o festejamos em comunhão com tanta juventude.
Perto do Tejo, quando começo a pensar nele, começa a soar dentro em mim, sempre com mais intensidade, não a estrídula via marítima, mas a tristíssima linha da Norma de Bellini, ópera que o Paulo Santiago ouvia sempre em deslumbramento: O rimembranze!