Recordações de Parsifal

Recordações de Parsifal

Num volume editado em 2003 e intitulado Música — minha antiga companheira desde os ouvidos da infância, são coligidas entradas no Diário do poeta José Gomes Ferreira relativas às suas apreciações e lembranças musicais, que foram inúmeras.

Recordava o escritor em 1967 a sua primeira audição do Parsifal em São Carlos. Gomes Ferreira fala dos Anos 20 do século XX. O texto pode, pois, referir-se à estreia da obra em São Carlos e em Portugal, na temporada de 1920-21, ou a alguma das representações do mesmo título que se deram no teatro no decorrer das temporadas de 1922-23 e 1923-24. Fiquemos com essas memórias.

12 de Agosto de 1967

Ontem, das onze à uma da noite, estive a escutar na Emissora o primeiro acto do Parsifal. E enquanto ouvia, com paciência deliberada, ia pensando em mil coisas, onde sobressaía a recordação da primeira vez que assisti à representação do Parsifal em São Carlos em mil novecentos e vinte e tal. Com o meu Pai. Ambos de smoking. Na plateia. E — ó espanto! — num domingo ou numa terça-feira de Carnaval que, nesses tempos, ainda rugia besta pelas ruas em folias desatadas.

Pois enquanto lá fora se arremessavam saquinhos de tremoços secos e os “dominós” sorriam, suspeitos, nos bailes dos teatros, ali em São Carlos o público, em êxtase doce, ajoelhava diante daquela mauvaise messe do Parsifal que, segundo o Stravinsky (senão me engano), devia ter ficado pelo prelúdio.

Mas nessa ocasião se alguém me viesse com opinião tão sacrílega, estrangulá-lo-ia com as mãos de colcheias violentas. O Parsifal parecia-me sublime (e ainda me parece em alguns passos — embora duma sublimidade pré-fabricada) – em perfeito acordo com as lágrimas do meu Pai, que nunca soube aplaudir doutra forma.

Ontem, raivoso de não concordar com os meus fantasmas, aquele interminável primeiro acto afigurou-se-me sobretudo maçador. E não me digam que essa chatice provém de só ter podido ouvir, e não ver, a ópera, pois o Parsifal não passa de uma longuíssima sinfonia para orquestra de que também fazem parte vozes. (A famosa conjugação de todas as artes de Wagner poderia resumir-se nesta fórmula: “mas só uma deusa verdadeira: a orquestra.”)

Claro, tem momentos espantosos — o que não me surpreendeu. O que me surpreenderam foram os outros, os banais, como por exemplo, um coro masculino, género Meyerbeer, quase no fim do acto.

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