São Carlos — local natural para saudar os Justos
A exposição Além Do Dever, dedicada aos diplomatas reconhecidos como Justos Entre as Nações, na qual se releva a figura do português Aristides de Sousa Mendes, dificilmente encontraria em Lisboa um melhor local para ser visitada.
Em primeiro lugar, porque o São Carlos é um teatro de ópera e justo será recordar que a Diplomacia Portuguesa tem uma magnífica referência lírica quando n’ O Cavaleiro da Rosa de Richard Strauss o Mordomo da Marechala informa que o “Excellence Silva” enviou um cantor italiano e um flautista para amenizarem o despertar da patroa. O Filósofo Manuel Lourenço propunha que este Silva fosse Teles da Silva Tarouca, adjunto da Embaixada de Portugal em Viena.
Depois, e bem mais relevantemente, porque a Lírica quase nunca se contaminou (ao contrário de outros campos – como a Filosofia, a Literatura ou a Pintura), por pensamentos e ações contrárias a uma ética do Amor e do Bem. A ópera é um mundo profundamente maniqueísta, onde os bons se encontram geralmente nos registos mais agudos (sopranos e tenores), os vilões nos mais graves (meios-sopranos, barítonos e baixos) – o trânsito ocasional de um para outro registo é das poucas perturbações permitidas neste mundo linear.
A ópera desde os seu inícios cantou à exaustão Deuses, Monarcas e Heróis da Antiguidade generosos, bondosos, prenhes de compaixão e de clemência. Havia, é certo, vilões nas histórias, mas o Bem e o Amor sempre venciam: Amor Omnia Vincit! O Romantismo, que nasceu pouco depois de São Carlos ter sido erigido, continuou por esta senda e o nosso teatro teve assim como heróis compositores que cantaram a Liberdade, a Humanidade, o fim das Opressões, a Solidariedade Humana nas suas mais variadas formas: Beethoven, com Fidelio, Rossini (com o portentoso final de Guilherme Tell!); Verdi (com o Coro dos Escravos Hebreus); Bizet (com a constante procura da Liberdade – “chose énivrante”! – em Carmen) … mesmo Richard Wagner, cujos escritos filosóficos resvalam várias vezes para visões perturbadoras (para sermos meigos) da Humanidade, tem na sua música uma das mais fervorosas apologias do Amor. E que dizer de Puccini, Richard Strauss, Leoncavallo, e tutti quanti? Já mais próximo de nós, um dos mais exaltantes espetáculos a que São Carlos assistiu foi a produção trazida pelo Teatro de Ópera de Varsóvia nos Anos 70 da ópera Os Diabos de Loudun de Penderecki, um fervoroso ataque à intolerância.
A ópera é, pois, um universo quase impoluto, onde interessa apenas saudar o Amor – de tal modo, que era comum ouvir-se cantar “Trionfi, Amore” no final de muitas óperas barrocas e clássicas; e tal continua a fazer-se em São Carlos, pois este é um local de repertórios que sempre se revisitam. Não menos significativo é o facto do universo lírico se exprimir naturalmente em variadíssimas línguas – quase tantas como as dos Justos que recordamos nesta exposição: em São Carlos ouve-se naturalmente Eu amo-te; Io t’amo; Je t’aime; Ya tebya lyublyu; Ich liebe dich. Para o público de ópera é igual!
O nosso teatro é pois, local natural para se saudarem os Justos e os Sobreviventes de todas as barbáries.