Em 2019 Portugal recorda e festeja jubilosamente o centenário do nascimento de uma das mais altas, límpidas e musicais vozes poéticas da sua história — a de Sophia de Mello Breyner Andresen, nascida no Porto a 6 de novembro de 1919.
Sophia de Mello Breyner repetiu no século XX, com voz única e veemente, o abraço secular da nossa poesia à cultura ancestral e maior da Antiguidade Clássica Grega. Não é, pois, estranho que nessa obra surjam títulos e personagens familiares a todos os amantes de ópera.
O estremecimento poético de Sophia de Mello Breyner ultrapassa, obviamente, a Grécia Clássica e mergulha noutras lendas e noutras paixões. O poema Tristão e Isolda, presente em Dia do Mar, é disso exemplo — é nele que surgem os versos Traziam em si suspensa / Indizivelmente a presença / Extasiada da morte. Fiquemo-nos, porém, pelos gregos e recordemos, do mesmo livro Dia do Mar, o poema Kassandra e os versos E o futuro vermelho transbordava / Através das pupilas transparentes. Ainda em Dia do Mar recorde-se estes assombrosos versos do poema Medeia (adaptado de Ovídio): As palavras que digo e cada gesto / Que em redor do seu som no ar disponho / Torcem longínquas árvores e os homens / Despedaçam-se e morrem no seu eco. Dia do Mar é uma fonte inesgotável de gáudio poético. É aqui que surge o primeiro de muitos poemas dedicados à figura de Eurydice na obra de Sophia: Eurydice, poema que abre com um verso de alucinada beleza — A noite é o seu manto que ela arrasta .
Num outro livro, Coral, surge uma nova heroína clássica no poema intitulado Ifigénia: E o seu rosto voltado para o vento, / Como a vitória à proa de um navio.
No livro No Tempo Dividido a figura da apaixonada de Orfeu surge por duas vezes em títulos de poemas: no poema Eurydice, onde surge o verso Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido; em Soneto de Eurydice, o segundo poema, onde se lê Ausência que povoa terra e céu / E cobre de silêncio o mundo inteiro. (Como ouvir Gluck sem lhe sobrepor esta música?)
No livro Mar Novo surge outra figura — a de Electra — num poema precisamente intitulado Electra onde se pode ler que O rosto de Electra é absurdo. / Ninguém o pediu e não pertence ao jogo.
No livro Geografia a figura atormentada da filha de Agamemnon surge de novo noutro poema intitulado Electra, que desta vez reza: Ela soltou os seus cabelos como um pranto. No mesmo Geografia há um poema intitulado Crespúsculo dos Deuses que não tem raízes nórdicas, mas gregas. Aí se pode ler: O grito rouco do coro purificou a cidade.
Eurydice regressa como título de poema no livro Dual. Aí lemos como primeiro verso: O teu rosto é mais antigo do que todos os navios. Dual traz-nos ainda a figura de Ariane no poema Ariane em Naxos. Aí surgem os versos: E pelo Deus tocado renasceu / Todo o fulgor de antigas primaveras.
O livro Musa (que directamente aponta para uma estrutura musical, dado que se divide em Três Andamentos) traz-nos, no 2º Andamento, três poemas dedicados à história de Orfeu e Eurydice! Há em primeiro lugar um poema intitulado Orpheu que me faz sempre pensar na cor do contralto quando leio os versos Orpheu seu canto alto e grave / O canto de oiro o êxtase da lira. Segue-se Orpheu e Eurydice com esta extasiante caracterização: Jovens luminosos muito antigos. Mesmo a fechar este 2º Andamento de Musa (e este artigo) o poema Eurydice em Roma onde se lê: Por entre clamor e vozes oiço atenta / A voz da flauta na penumbra fina.