No dia 7 de maio de 1993 reuniam-se na Basílica da Estrela os dois principais corpos artísticos do Teatro Nacional de São Carlos (o Coro do TNSC e a recentemente formada OSP) para interpretarem a oratória The Creation (A Criação) de Joseph Haydn. A direção estava confiada a um dos mais conceituados intérpretes da nossa época — Harry Christophers — e o elenco de solistas incluía os nomes de Rose Mannion (Gabriel / Eva), Thomas Randle (Uriel) e Robert Hayward (Rafael / Adão). Susana Moody, elemento do Coro do TNSC, cantava um solo para contralto.
Basílica da Estrela à cunha, cheia como poucas vezes a vi. Tudo esperava solenemente a entrada do maestro para dar início à “criação” de Haydn e, como é costume, fez-se silêncio.
Eis que se começa a ouvir um som muito agudo, contínuo, persistente, avassalador, que parecia chegar da abóboda ou das altíssimas paredes de pedra. Ninguém conseguia descobrir de onde provinha. O que sabíamos é que com aquele som ninguém conseguiria afinar convenientemente o início da obra e a coisa tornar-se-ia trágica: em vez da Criação arriscávamo-nos a ter um Dilúvio, tal a água que iríamos meter!
Pesquisou-se, indagou-se, procurou-se. Nada! Na primeira fila, alheio a toda esta azáfama, com um sorrisinho diáfano nos lábios, com certeza pelo prazer antecipado de ir ouvir a Oratória de Haydn, estava sentado um senhor de certa idade.
Era o “criminoso”!
No desejo de ouvir muito bem a partitura de Haydn, o senhor muniu-se do seu aparelho auditivo e fez muito bem, porque quando certas mazelas começam a surgir só temos mesmo é de melhorar a nossa vida. Mas aquele aparelho auditivo tinha queda para cantor! Julgava-se soprano! Era ele que lançava aqueles sons estratosféricos que inundavam e pareciam encher e esgotar a capacidade acústica da Basílica da Estrela.
Foram pedir ao senhor para regular o aparelho e lá começou a soar então a Overture (The representation of Chaos). Espíritos maldosos avançaram com a pérfida hipótese de que o senhor queria mesmo ouvir… o Chaos.
Nunca me esquecerei desta noite!