Estando prestes a ser estreada em São Carlos a oratória A Child of Our Time, do inglês Michael Tippett, que teve como fonte de inspiração um acontecimento histórico – o gesto de um jovem judeu que constituiu faísca para a explosão da tristemente célebre Noite de Cristal na Alemanha – justo será recordar que a história (mítica ou real) do povo judeu tem sido uma fértil fonte de inspiração musico-dramática. Uma enormíssima quantidade de obras musicais centraram-se, de facto, nas perseguições, exílios e chacinas de que esse povo foi alvo ao longo da história. A Bíblia, principal fundamento literário e ético da matriz Judaico-Cristã da nossa civilização, foi, assim, profusamente manuseada musicalmente. As histórias bíblicas, contudo, tiveram, nos dois primeiros séculos da ópera, sobretudo realizações no domínio da música sacra e da Oratória. O Livro era fonte em que o teatro, universo profano por excelência, não gostava de beber e a ópera preferiu centrar-se nos deuses, monarcas e heróis da Antiguidade Greco-Romana.
Assim, para começar, e já que falámos de uma oratória inglesa seria injusto não recordar a espantosa série de oratórias escritas pelo alemão Georg Frederic Handel para o povo britânico baseadas na história hebraica e com personagens da história hebraica: Israel in Egypt, com certeza, mas não esqueçamos as portentosas Samson, Jephtha, Saul (onde surge uma Marcha Fúnebre que Lord Wellington quis tocada no seu funeral), Solomon (na qual surge a portentosa Entrada da Rainha de Sabá), ou ainda Esther, Deborah, Joseph and his Brethren, Belshazzar, Judas Maccabaeus, Joshua ou Jephtha. A Itália também não era imune a esta nascente bíblica – as Juditha Triunfans, as Betulia Liberata, as Caduta di Adamo, etc. jorraram por toda a Europa.
Os assuntos bíblicos entraram decisivamente na história da ópera a partir do século XIX. Claro que a ópera conspurcou a história e a Bíblia, criando situações que as mesmas não relatam: por exemplo, na ópera Mosè in Egitto de Rossini, de 1818, o cisne de Pesaro não hesitou em criar um romance entre Osiris, filho do Faraó, e Anaïde, filha da bíblica Miriam. O Templo de Salomão em Jerusalém foi destruído em 569 e a destruição é fantasticamente retratada na ópera Nabucco de Verdi, onde surge a romantizada figura de Zacaria, modelada pelos profetas bíblicos. Samson et Dalila de Camille Saint-Saens surgiu bem mais tarde, em 1877, e foi das poucas, como Nabucco, a manter-se regularmente em repertório. Certo é que, apesar de todos os liberalismos da época romântica, todas as óperas que se atreviam a tocar no Antigo Testamento (ou mesmo no Novo, como o Stifellio de Verdi) tiveram problemas com a censura. Recorde-se tambám Judith , ópera em 5 actos do compositor russo Alexander Serov, que se baseia na história de Judite e Holofernes do Antigo Testamento, com a ação a decorrer em Betúlia no século 6 a.c. A ópera La Juyve de Halévy não nos traz relatos bíblicos, mas centra-se nas perseguições que o povo judeu sofreu na Europa, sobretudo após a grande peste Negra que assolou o continente no século XIV. É aqui que se pode ouvir, no Acto II, o coro cantar “Plongeons dans le lac cette race rebelle et criminelle” e, no Acto V, “Au bucher les juifs!… qu’ils périssent!”.
O século XX, perdendo constrangimentos, viria a modificar a situação e abre as suas portas em 1901 com Saul og David de Carl Nielsen. A Salomé de Richard Strauss surgiu em 1905 e não se baseou na Bíblia, mas sim numa tradução alemã da obra de Oscar Wilde. Talvez o facto de não se basear diretamente na Bíblia tenha permitido a Strauss os “excessos” que repeliram muita gente aquando da estreia. Moses und Aron de Schoenberg, de 1954, uma das obras centrais da ópera do século XX, reflete também sobre um episódio central da história hebraica – a do Bezerro de Ouro. Teríamos de esperar até à segunda metade do século XX para vermos, agora com cena passada em Lisboa, uma ópera que retrata um auto-da-fé: Blimunda, de Azio Corghi, baseada n’O Memorial do Convento de José Saramago. Para não falarmos da Candide de Leonard Bernstein que, baseada em Voltaire, retrata a mesmíssima realidade: um auto-da-fé em Lisboa.
O Holocausto não tem tido (ao contrário de episódios tão trágicos e dramáticos como a fuga do Egipto dos Faraós, a destruição do Templo, as perseguições na Europa), reflexos operáticos. O tempo ainda não terá sedimentado suficientemente o horror – ainda há carrascos e vítimas vivos e filhos e netos de carrascos e vítimas. Mas o fervor que assola o mundo da ópera, a que já chamaram “produtivite” (da palavra inglesa production), não tem deixado de travestizar os prisioneiros de Fidelio, ou os de Aïda, em judeus em campos de concentração alemães. Não serão, sequer, necessárias representações do Holocausto, pois no próprio seio do horror nasceu a ópera Der Kaiser von Atlantis de Viktor Ullmann (assassinado em Auschwitz), que foi escrita em 1943 no campo de concentração de Theresienstadt e não executada antes de 1975. Ou Brundibár (Abelhão), uma ópera infantil de Hans Krása, originalmente executada pelas crianças do campo de Theresienstadt na Checoslováquia ocupada.
Refira-se ainda, quase a terminar, a ópera Babylon, de Jörg Widmann, que descreve o quotidiano de uma cidade multi-religiosa e multi-cultural e que conta também os conflitos que nascem do amor do judeu Tammu pela jovem babilónica Inanna. Foi estreada em Munique em 2012 sob a direção de Kent Nagano.
Por fim, e como mensagem de comunhão, refira-se The Cave, uma ópera multimedia de Steve Reich estreada em 1993 em Viena que se baseia na Gruta dos Patriarcas em Hebron, lugar sagrado onde rezam judeus, cristãos e muçulmanos.