Alguns dos mais conhecidos romances de Eça de Queiroz contêm deliciosas descrições de noites em São Carlos. É natural, dado que o teatro era um dos principais centros de socialização do país no século XIX. Fora da obra ficcional, no entanto, o romancista também nos deixou alguns outros textos que refletem um seu interesse mais alargado pela ópera. “Espreite-se” um deles, publicado em 1866 e que toma como centro a figura de Don Juan.
“Molière e Hoffmann ambos fizeram um D. Juan. O conto de Hoffmann é a revelação do poema de Mozart. A maneira diversa por que foi concebida a grande figura de D. Juan pelo poeta e pelo músico revela os profundos dilaceramentos modernos.
O D. Juan de Molière é ateu, incrédulo, aceita os nervos como religião e devoção como uma ironia.
Tem paixões e arrebatamentos, contanto que não lhe amarrotem as rendas do seu colar.
(…)
O D. Juan de Mozart esse tem uma lista de três mil namoradas: e todavia vai pelo mundo, angustiado e inconsolável, procurando a esperada do seu coração, como um sacerdote perdido que anda perguntando pelo seu deus. Vai pelos povoados, por entre as arquitecturas e por entre as florestas, pela Espanha, por Florença, e por Berlim, suspendendo as escadas de seda a todos os balcões, e os seus desejos divinos aos lábios da noite.
Ele embala nos seus braços moles de languidez as trigueiras, as louras, as joviais, as melancólicas, as castas, as fortes, as impuras, as nocturnas, as luminosas e as esfarrapadas. Depois soluça baixo como numa penitência.
Voam em redor dele figuras transparentes mais delicadas do que as Virgens de ouro fino de um livro de legendas e ele envolve nos braços aquelas sombras de corpos flutuantes, bebe-lhes toda a vida em beijos infinitos. Ele encontra Elvira: ama-a, como se as asas com que há-de subir ao infinito nascessem nos ombros dela. A alcova tem uma sombra augusta e nupcial; as luzes esmorecem; da guitarra sai aquela música mole, e indefinida, e queixosa, semelhante a um luar sonoro. Ela, com os cabelos soltos como os raios dispersos de um grande Sol negro, com um divino movimento lascivo, como se a embalassem os braços de um deus, deixa, no colo de D. Juan, virem como uma onda, sobre os seus seios nus, as suaves preguiças.
E ele sofre e torce os braços nas suas dores mudas.
Lá fora estão os loucos companheiros, que hão ir logo em cavalgada nocturna, cantando sob a moleza dos astros. E ele soluça nas suas dores mudas.
Ao longe estão na sombra os seus palácios cheios de fulgurações, de sinfonias, de cantos, de radiosas violências flamejantes, como no fundo de uma glória. E ele foge com as suas dores mudas.
O que tem? Não perguntaram? Tem a nostalgia do infinito.
O indefinido daquela alma revelada pela Arte eis aí a música.
Por isso ela é a voz espontânea de todos aqueles que, como D. Juan, andam curvados, esfomeados de ideal, nocturnos, empalidecidos pela lua.
Todas as tristezas deste tempo encontram na música o respiradouro do livre azul ideal e vivo: e nas horas da dor, vão ali respirar aquele ar, onde derramadas as consolações divinas. Assim a música aparece neste século como uma voz inesperada em que se entendem os desconsolados. E os desconsolados foram toda uma mocidade pálida e nervosa, toda uma Primavera sagrada! Poucos foram os fortes, os serenos, de largos risos sonoros e de seios de heróis.
As almas tinham tomado as qualidades da noite, o vago, o silêncio, a tristeza e o esvaecimento!
A música saía espontaneamente destas dores que se queriam exalar, como outrora saiu do choro rítmico de Rama todo o divino poema da Índia.
A loira Alemanha de ideal seriedade, luminosa, um tanto nuvem, cheia de vapores e de constelações, devia sobretudo adoptar a música como a pilha cheia de vozes, há tanto tempo esperada pelo seu coração mudo.
A música que é o vapor da arte é a maneira de pensar da alma alemã, que os seus instintos sagrados levam para as livres claridades e para os esvaecimentos.
A Alemanha pensa com um doce ruído inefável.
A música italiana, essa tem o quer que seja de palpável, de luminoso, de ondeante, como seda invisível: sente-se que por pouco que se condensasse, as mãos encontrariam como que um tecido de sol, uma moleza viva que se poderia vestir.
A música italiana sai profundamente da Natureza, como a alemã sai profundamente da alma; de resto a alma, a Natureza, são duas maneiras de ser de deus.
A música dos maestros do Sul é sobretudo voluptuosa: parece sair dos movimentos melodiosos de um corpo feminino e lascivo que estremece de desejos surdos sob os veludos, que se torce nas sedas, em desfalecimentos e sobressaltos. As heroínas dos seus poemas musicais, Lucia, Norma, Traviata, são um coro lírico que canta todas as voluptuosidades adúlteras, todos os desvairamentos. Mesmo Bellini, o meigo Bellini, contemplativo, dolorosamente queixoso, delicadamente lânguido, não pode arrancar a sua Itália do coração, e derrama pela partitura da Norma todas as fulgurações do desejo, todas as imolações apaixonadas, todos os arrependimentos desvairados e soberbos.
E agora Mozart encontra D. Juan, o de lábios africanos, vindo de Espanha, dos calores silenciosos, dos seios rijos, dos beijos flamejantes: quem escreve o libreto de D. Juan é Lorenzo de Ponte, um meigo doido de Veneza, jogador, duelista, neto de Lovelace, com largos horizontes e largas cantigas e o peito cheio da religião da carne e do sol. Mozart mesmo tinha estado em Itália e amava a alma luminosa do doce Rafael; e apesar de tudo, quando anima D. Juan, não sente o coração e o talento da sua branca Alemanha?
Não estão naquela criação todas as esperanças, todas aas religiões, todos os amores, todos os idealismos, todas as desesperanças da pátria?
É isto o que Goethe, o olímpico, sentiu profundamente, quando disse que Mozart era o único música capaz de compreender o Fausto e de sentir Margarida.
E todavia a Alemanha e a Itália têm o mesmo delicado sentimento do grande tipo, que simbolizava na vida o tempo moderno. É por ele que se levantam no Norte e no Sul as vozes que o revelam no amor, no ciúme, na severidade, e na melancolia. Em toda a obra musical, sempre que aquela figura se ergue, trágica e desgrenhada. É ele que tem ciúmes em Otelo; que se desespera em Fidélio; que quer ser livre em Guilhermo Tell; que cisma ao luar em Freischütz; são as suas recordações que cantam na Lucia, na Traviata, na Sonâmbula; é ele que cisma com o Oriente em Semiramís; que desvaira em Roberto, o Diabo; que sonha as aventuras no Hernâni e que sofre de amor e de venturas de amor no D. Juan do divino Mozart.
Assim estas escolas outrora hostis vão-se fundindo, a Alemanha dando o seu iluminismo e a Itália a sua paixão.
E assim a Arte vai sendo a primeira a unir as pátrias pela reconciliação das almas.”
A Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866.