José Saramago no Céu

José Saramago no Céu

José Saramago manteve uma fortíssima ligação com São Carlos. No nosso Teatro, de facto, foram apresentadas algumas óperas e outras peças musicais baseadas em obras de sua autoria. A  ligação do escritor ao Teatro é, porém, bem anterior a essas apresentações, pois Saramago desde muito cedo começou a assistir a espectáculos na sala.

Ocupava, nessas suas primeiras “visitas”, os lugares com os preços mais económicos, tal como me revelou numa conversa mantida em sua casa a 22 de Março de 2006.

 

Eu ia para o galinheiro porque não tinha outro sítio.

 

A partir de certa altura, porém, José Saramago começou a frequentar a plateia do Teatro, acontecimento que, aliás, aflorou nos seus Cadernos de Lanzarote: 18.04.1997: (…) pela primeira vez na vida dei por mim sentado na plateia do São Carlos, gata borralheira que foi ao baile e ainda crê que está a sonhar. Tocava para mim um dos maiores violoncelistas daqueles tempos, e no dia seguinte o Ávila apresentava-me ao Fernando Piteira Santos, e logo ao resto da companhia, à medida que iam aparecendo.

 

Informação um pouco lacónica que o escritor desenvolveu, a meu pedido, nessa conversa mantida em sua casa em 2006. Falou-me então mais pormenorizadamente acerca dessa primeira vez que assistiu a um espectáculo sentado na plateia do Teatro – lugar “nobre” que ele habitualmente não ocupava.

Saibamos como foi:

 

Vou-lhe contar uma história. Nos Anos 50, ou coisa que o valha – sim! Anos 50! – eu frequentava muito o Café Chiado, que depois desapareceu para dar lugar à Companhia de Seguros Império, que parece que também já lá não está. Era no tempo em que o café era um lugar onde a pessoa se sentia bem, mesmo que estivesse sozinha a ler o jornal, e o café Chiado, onde eu me reunia com amigos, era muito particular nesse aspecto – os empregados eram muito simpáticos e toda a gente se conhecia. Isso acabou, claro.

Havia ali um outro grupo, para o qual eu olhava com uma certa inveja, onde apareciam uns figurões – aparecia o Piteira Santos, aparecia o Carlos de Oliveira também uma vez ou outra, o Augusto Abelaira… Eu sabia quem eles eram, de maneira que me punha  à escuta para ver se aprendia alguma coisa, mas os escritores quando estão reunidos só contam anedotas, normalmente. Havia uma outra pessoa que ia também muito ali, que era o Humberto d’Ávila, crítico de música, enfim, uma pessoa a quem se deveu na altura uma actividade muito influente.

Um dia estava eu sozinho no café Chiado, ao fim da tarde, vejo parar um táxi à porta e sai dele, esbaforido, o Humberto de Ávila que entra, olha em redor, e põe os olhos em mim. Nós não nos conhecíamos!

E diz-me: – Olhe, eu vou agora a um recital e tenho dois bilhetes. Se você quiser, terei muito gosto em lhe dar um.

Foi como se me caísse um maná do céu.

– Ah, claro. Muito e muito obrigado.

E então lá fomos. Duas plateias no São Carlos. Era o violoncelista Pierre Fournier. Que de facto era uma coisa…

Eu nesse momento senti-me … e volto outra vez a falar do Céu, mas como era uma coisa que realmente não parecia da terra tinha de ser de algum lugar, e se era de algum lugar, era do Céu! Que instrumento! Que beleza! Que suavidade! Que expressão! Ficou-me para sempre.

Sempre, sempre, sempre…