Em 1927 o poeta chileno Pablo Neruda (Nobel da Literatura em 1971) iniciou uma carreira diplomática como cônsul na Birmânia. Em seguida, viria a exercer funções em várias cidades e países: Sri LanKa; Java; Singapura; Buenos Aires; Barcelona e Madrid. Nas suas Memórias com o título Confieso que he vivido o escritor conta-nos uma história que decorre entre Colombo (Sry Lanka) e Santiago (Chile) e que liga Proust, Arrau, César Frank, Verdi e ainda alguns outros.
Tinha quase terminado de escrever o primeiro volume de Residencia en la Tierra [série escrita entre 1925 e 1931] e o trabalho avançava lentamente. Eu estava separado do meu mundo pela distância e pelo silêncio e era incapaz de entrar verdadeiramente no estranho universo que me rodeava.
O meu livro recolhia como episódios naturais os resultados dessa minha vida suspensa no vazio: mais perto do sangue que da tinta. O meu estilo tornou-se mais depurado e eu comprazia-me na repetição de uma melancolia frenética, insistindo, por verdade e por retórica, num estilo amargo. O estilo não é apenas o homem. É também o que o rodeia. Se a atmosfera não entrar dentro do poema, o poema está morto; morto porque nunca pôde respirar.
Nunca li tanto e com tanto prazer como naquele subúrbio de Colombo em que vivi solitário por muito tempo. De vez em quando regressava a Rimbaud, a Quevedo ou a Proust. Du côté de chez Swann fez-me reviver os tormentos, os amores e os ciúmes da minha adolescência. E compreendi que aquela frase da sonata de Vinteuil, frase musical a que Proust chamou “aérea e fragrante”, é uma desesperada medida da paixão, nela se podendo encontrar a mais requintada descrição de som encantatório.
O meu problema naquela solidão foi encontrar essa música e ouvi-la. Com a ajuda de um amigo músico e musicólogo investiguei até descobrir que o Vinteuil de Proust foi formado talvez por Schubert e Wagner e Saint-Säens e Fauré e D’Indy e César Franck. A minha indigna má educação musical manteve-se ignorante de quase todos estes compositores. As suas obras eram-me quase desconhecidas ou impenetráveis. O meu ouvido sempre reconheceu apenas as melodias mais evidentes e mesmo essas com dificuldade. Finalmente, avançando na pesquisa, mais literária do que sonora, consegui um álbum com os três discos da sonata para piano e violino de César Franck. Não havia dúvida, ali estava a frase de Vinteuil. Para mim não havia dúvida de que estas eram a frase e a sonata. Os críticos que tanto analisaram os meus trabalhos nunca constataram até agora esta secreta influência que aqui confesso.
(…)
Anos depois, já regressado ao Chile, encontrei-me numa tertúlia, juntos e jovens, os três grandes da música chilena. Foi, creio, em 1932, em casa de Marta Brunet. Claudio Arrau conversava a um canto com Domingo Santa Cruz e com Armando Carvajal. Aproximei-me deles, mas mal repararam em mim. Continuaram a falar imperturbavelmente sobre música e sobre músicos. Decidi então brilhar e falei-lhes daquela sonata, a única que eu conhecia.
Olharam-me distraidamente e lá do alto responderam-me:
– César Franck? A que propósito César Franck? O que tu deves ouvir é Verdi!
E prosseguiram a sua conversa, sepultando-me numa ignorância de que ainda não saí.
Pablo Neruda: Confieso que he vivido. Memorias.