– Dr. Serra, um telefonema dos Russos!
Percebia-se pelo afogueamento da secretária da Direcção, que a coisa era delicada.
– Mau! Vamos lá ver o que é que estes querem.
O Dr. Serra Formigal, Presidente do São Carlos no ano de 1983 em que se passa a história, sabia bem que telefonema não esperado em vésperas de vir o Bolshoi a São Carlos só poderia ser algo de complicado. O seu faro teatral raramente o enganava.
Pegou no telefone, ouviu o que tinha a ouvir e disse, peremptório:
– Se ela não vem, não vem a Companhia. Mais nada! Toda a gente está à espera de ver a Maya Plisetskaia. Se ela não vier, não me interessa!
Não sei o que se passaria em Moscovo, não sei o que se decidiu depois disto – só sei que assisti a esta cena no gabinete do Dr. Serra Formigal e que a resposta dele fez com que eu e milhares de portugueses tivéssemos experimentado, por breves momentos, algo que será parecido com o Céu.
Maya Plisetskaia veio a Lisboa, contratada por São Carlos, como estrela absoluta, absolutíssima, dessa digressão do Bailado do Teatro Bolshoi. Como se adivinhava uma afluência desmesurada, pensou-se de imediato que os espectáculos decorreriam no Coliseu dos Recreios, naqueles anos habituado a receber as produções de São Carlos.
Foram duas noites absolutamente inesquecíveis!
Numa delas assistiu-se a algo de verdadeiramente único.
Plisetskaia dançou A Morte do Cisne.
A casa veio abaixo!
Teve de bisar.
O entusiasmo redobrou, em intensidade e duração.
Dançou terceira vez.
A loucura começou a fazer perigar as estruturas do Coliseu dos Recreios, pois já se batia compassadamente com os pés, enquanto se gritava “Mááááya! Mááááya! Mááááya!”
Dançou quarta vez.
Começou toda a gente a berrar descontroladamente e ninguém saía da sala. Desconfio que neste momento senhoras e cavalheiros tenham perdido peças de roupa, pois as mesmas eram lançadas pelo ar, bem como os braços e os programas e as vozes.
Maya Plissetskaia começou então a dançar pela QUINTA VEZ!
Eu nunca tal vira, confesso, nem nunca mais vi até hoje – um artista interpretar a mesma obra cinco vezes de seguida. Ou melhor, quatro vezes e meia, pois a meio da última vez a Produção fez baixar lentamente o volume da gravação que estava a ser utilizada. Plisetskaia avançou então pelo palco, encolheu os ombros sorrindo e fez-nos amabilissimamente perceber que … já chegava!
Bem, aí … fiquei completamente rouco de tanto gritar “Bravô”!
O epílogo da noite foi também digno de nota.
É que depois do espectáculo assistiu-se a uma cena digna das crónicas do século XIX, em que o público puxava as carruagens das divas, as acompanhava até aos hotéis, e coisas dessas.
Maya Plisetskaia saiu do Coliseu pela rampa lateral, já sentada num luxuoso Mercedes. O público fechou a rampa, ajoelhando-se à frente do carro! A bailarina, então, saiu e distribuiu pelos que estavam mais próximos, como recordação, colheres de pau russas! A minha ainda está na minha biblioteca.