A EXC.ma MADRASTA D’EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA Se me arguirem de adulador da senhora condessa, madrasta d’el-rei D. Luiz I, são iníquos. Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances de cantora não escripturada, eu sahiria por honra do seu nome de artista contra o calumniador que lhe ma reasse os applausos recebidos no theatro do Porto, há quatorze annos.Em um numero da Lanterna, periódico truculento, li que a esposa do viúvo de D. Maria II havia sido pateada na rampa do theatro de S. João, em 1859.É calumnia, que vou desfazer com a imprensa contemporânea.Conceda-se-me a abstinência de tratamentos regiamente honoríficos, em quanto a nobre condessa de Edla me permitte pleitear em prol dos seus créditos de cantora.A snr.a Elisa Hensler cantou, pela primeira vez, no theatro do Porto, na noite de 8 de outubro de 1859. O Nacional do dia 10 escreve o seguinte: «A companhia italiana estreou-se effectivamente no sabbado, e não se estreou mal. A escolha da ópera foi acertada – O Saltimbanco é uma bella partitura… e a prima-dona Hensler é bella, jovem, e canta com mimo. A sua voz, se não é possante, é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante para o nosso theatro. O público ficou agradavelmente surprehendido, e deu lisongeiro acolhimento à mimosa cantora… Tanto no duetto como no rondó mostrou a snr.a Hensler que possue dotes musicaes pouco vulgares. O sentimento com que cantou os andantes do duetto, a bravura e perfeição na execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos tão nítidos e puros, que ella faz em notas tão agudas no rondó, é sufficientemente para corroborar as grandes e vantajosas informações que a precederam; e o público foi justo com os applausos e chamadas no fim da opera.» Receio que os detractores da mimosa cantora venham com artigos de suspeição ao Nacional, culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor, já na censura, em juizos theatraes. Contra esses artigos redargúo estampando a opinião do Commercio do Porto, o jornal mais sério do paiz: «Abriu-se no sabbado com a ópera o Saltimbanco de Paccini … Fizeram a sua estreia n’esta ópera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima dona Hensler foi applaudida e teve uma chamada no fim.» (Commercio de 10 de outubro). E no folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n’estes termos: «A snr.a Hensler é uma excellente cantora. A sua voz de soprano-agudo é de sonoro timbre; e, ainda que de pouco volume, extensa, flexível, melodiosa e fresca. Possue, além d’estes dotes naturaes, outros não menos valiosos como cantora: conhecimento do mechanismo do canto, perfeita entoação e expressão. Revela a seu grande mérito como cantatriz nos floreios, nas escalas chromáticas, e especialmente nos trinados. Na passagem da 1.a à 2.a cavaletta do seu rondó final faz admirar os três longos e bellos trinados em sol, lá e si agudos. Na difficil cavaletta de sua cavatina do 1.º acto são muito merecidos os applausos que tem colhido. No larghetto e cantabile do duetto do barítono e soprano do 3.º acto, não obstante a agudíssima tacitora em que está escripto, não deixa a snr.a Hensler nada a desejar. A todas estas excellentes condições como artista e cantora reúne uma presença sympathica, qualidade esta de muito valor no theatro.»Já no Nacional de 13 este parecer viera corroborado com estes gabos: «E a prima-dona Hensler? Não desmereceu em nada das primeiras impressões que nos imprimiu. É sempre a cantora mimosa e correcta.»O Commercio de 29 de outubro classifica maviosamente a dôce cantora com esta phrase: «A prima-dona Hensler é o bijou da companhia.».Na noite de 6 de novembro cantou a snr.a Hensler a parte de Lucia. O Nacional diz o seguinte: «A snr.a Hensler na ária do 3.º acto remiu-se do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e doçura que a platéa apesar de gelada rompeu então em reiterados applausos.» (Nacional de 7 de novembro). O Commercio, esquivando-se à ingrata e desmerecida palavra fiasco, escreve: «A sr.a Hensler foi muito applaudida no rondó e os applausos foram merecidos no andante, que cantou lindamente, executando com admirável justeza a cadencia em unisono com a flauta… Na cavaletta não foi tão irreprehensivel a execução.». Está de accordo com o Nacional de 8 de novembro: «A snr.a Hensler continua a ser applaudida no rondó do 3.º acto, onde a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz fosse tão volumosa como é suave, seria uma artista de infinito merecimento.»A 12 de novembro principiam os jornaes a gemer sobre a gaveta do snr. Laneuville, empresário que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel. Sem embargo, a snr.a Hensler, na confirmação dos dous citados jornaes, excedia-se no mimo do canto. Dir-se-hia que attentava em captar com as harmonias dulcíssimas da sua voz o archanjo torvo da miséria que espreitava o empresário por entre as bambolinas de cartão esgarçado.Alguns amadores, que previam o desastre da empresa nas cadeiras vasias da platéa, fermentaram a occultas dous bandos que, mais ou menos ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas. É o que se deprehende das revelações do Commercio de 5 de novembro que reza assim: «No pessoal da companhia não há nada que desafie enthusiamo e dê vida animada ao theatro, apesar dos esforços que alguns poucos frequentadores do theatro, dos mais desenfadados, empenham para crear partido às duas damas.Houve já episódios curiosos; porém nem as damas, nem os seus admiradores conseguem fazer móça no indifferentismo do público, que reconhece superioridade relativa na dama Hensler; mas não vê ainda assim motivo justificado para se enthusiasmar.»Com a sua usual discrição, omittiu o Commercio os episódios curiosos. Bem é de vêr que o amor, ideal da arte das fusas e semifusas, não seria estranho aos sonegados episódios. A radiosa belleza da cantora sem dúvida attrahia umas borboletas, que então douravam o seu polen sob as fulgurações do lustre; todavia, como a dignidade da artista se esquivasse às intrigas de bastidor que, às vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa faliu.Decorreram uns quinze dias angustiados para a companhia desvalida. Hermann, aquelle prestigiador cavalheiroso que morreu há dous annos, estava então no Porto. Foi elle o generoso valedor dos artistas e ainda do empresário. A companhia, em fim de dezembro, estava dispersa, não deixando um vestígio de fragilidade no seu rasto de pobreza.Em 21 de dezembro d’aquelle anno, uma local do Commercio dizia: «O vapor Lusitania sahido hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118 passageiros, entre os quaes: Elisa F. Hensler, etc.»Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa a cantora. Devia levar na alma os lutos da natural vaidade ferida pela indifferença gélida d’uns pisa-verdes que honraram grandemente a mulher, menosprezando a artista. Dos frementes applausos, que a victoriaram quando assomou deslumbrante no palco, ao fastio com que as filas dos seus admiradores rarearam, vai a distancia que medeia entre a mulher honesta e a que permitte que lhe abram saldo de contas em que os applausos representam uma verba.Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada pela empresa de S. Carlos, ao encarar a princeza do Tejo, que devia vestir de negro n’aquelle dia de dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte, em theatro de jerarchia tão elevada para suas forças. Não sei porque frontarias de palácios lhe avoejou a vista absorta nas tristezas de quem ia sósinha, forasteira, sem o géniogrande que estua no peito as palpitações do triumpho. Não sei; mas, se encarou lá em cima os palácios dos dous reis, com que olhos a esposa do snr. rei D. Fernando avistará hoje o Tejo, por onde entrára n’aquella manhã pardacenta de nebrina carrancuda de agouros esquerdos! Se ella então preveria um marido rei nas Necessidades, um enteado rei na Ajuda, e toda aquella Lisboa, e todo este reino, e nós todos às suas plantas, nós todos, os bons súbditos do rei que é marido, e do rei que é enteado, e d’ella, que vale mais que todos, por que, offuscando-os com a auréola da arte, estrellada das seducções da belleza, nos revelou que os reis deslumbrados eram apenas homens!
