Críticos e Críticas

A ópera I Capuleti e I Montecchi de Vincenzo Bellini teve, desde a sua estreia portuguesa em 1835, várias produções em São Carlos no decorrer do século XIX. A última a dar-se nessa centúria surgiu em 1895, quando o mundo lírico já só respirava verismo e esquecia, ignorava ou hostilizava na generalidade a produção romântica bel cantista de Bellini, Rossini ou Donizetti.

Nas récitas que se deram em São Carlos em 1895 foram intérpretes Annetta Barone (Giulietta), Guerrina Fabbri (Romeo), Angelo Chinelli (Tebaldo) e ainda Riccardo Sillingardi e Napoleone Limonta, sendo maestro Vincenzo Pintorno.

Siga-se algumas das apreciações que surgiram na época e constate-se como, naquele tempo, os críticos eram bem mais ferozes, irónicos, sardónicos e mauzinhos do que os de hoje.

Assim, leia-se a crítica do Diário de Notícias, saída a 4 de Fevereiro de 1895:

 

“À excepção do 4º acto, em que a srª Fabbri foi com justiça aplaudida na sua ária Ah si tu dormi, não satisfez ao publico do nosso teatro lyrico a execução da antiga ópera de Bellini.

Os frequentadores de S. Carlos estão reprovando asperamente esta ressurreição do velho reportório, quando para a sua exhibição se não disponha de bons elementos. É por isso que aconselhamos à empresa a apresentação de óperas modernas e que não tenham contra si confrontos pouco lisonjeiros.”

 

A crítica do Diário Ilustrado comparava a distribuição presente com as anteriores – em que se tinha apresentado a grande Giuseppina Pasqua como Romeu:

 

“Cantou se hontem esta ópera de Bellini.

O publico deu manifestações de desagrado, excepto à srª Fabbri, que cantou primorosamente o seu papel de Romeu, nada perdendo no confronto com Pasqua, sempre lembrada com saudades quando se canta esta ópera”

A crítica d’ O Século falava também essencialmente da intérprete de Romeu, o contralto Guerrina Fabbri:

 

Capuletos e Montechios é uma ópera em que, no theatro de S. Carlos, só há a vêr e ouvir a artista encarregada da parte de Romeo. Os outros personagens da partitura são sempre confiados a artistas secundários. Portanto, só temos de falar da srªa Fabbri. Esta cantora acentuou bem a ária do 1º acto e a scena final do 4º acto da ópera Romeu e Julieta de Vaccai, que ordinariamente substitue a ultima parte da ópera de Bellini. A bella voz de contralto da srª Fabbri conduzida com sentimento, presta-se à interpretação da parte de Romeo, assim como a sua varonil figura desenha bem o typo do mancebo, chefe dos Montechios. A srª Fabbri foi bastante aplaudida nesta ária e recebeu muitos bravos no ultimo acto.

O solo de clarinete na orquestra foi bem desempenhado; o 1º trompa é que não esteve feliz nos seus solos.”

 

A Vanguarda também elogiava Fabbri, no essencial:

 

“Foi cantada hontem n’este teatro a antiga ópera Capuletos e Montechios, e melhor teria sido que o não fosse, porque, embora a srª Fabbri cantasse muito bem o papel de Romeo, o conjuncto foi detestável.

A srª Fabbri, que tem tido a infelicidade de se encontrar no palco de S. Carlos com péssima companhia, é uma cantora de recursos seguros e artista distincta. Hontem foi principalmente aplaudida no terceiro acto e no quarto, que disse excelentemente.

O resto, foi, porém, mal e tão mal, que o tenor Chinell provocou sucessivas e justificadas manifestações de desagrado.”

 

A Folha do Povo, por seu lado, rezava assim:

 

“Esta ópera de Bellini, de música tão repassada de ternura e de melancolia, como são em geral todas as óperas de sua composição, foi recebida na representação de hontem, a primeira na presente época, com a mais acentuada manifestação de desagrado.

Todos os actos, ao cair do panno, foram pateados, mais de certo pela má distribuição dos personagens da ópera do que pelo tom dominante de toda a partitura, sempre melancólico, sempre plangente, sem transportes, nem contrastes que interessem o auditório.

Não foi, nem podia ser, como dissemos, o estylo da composição lyrica que levou a platéa de S. Carlos a insurgir-se contra a ópera de Bellini, mas a inconveniente distribuição dos papeis. Muito mais plagente e monótona é toda a musica do Orpheo e todavia os espectadores de S. Carlos o receberam sem manifesto desagrado nas três recitas em que foi cantado.

Nos Capuletos, quem está bem no seu logar, e distinctamente interpreta a figura principal, Romeo, é a srª Fabbri. Os mais exceptuando talvez a srª Baronne, em algumas scenas, não chegam à craveira dos respectivos papeis. N’estas circunstancias não levantam a opera, abatem-n’a sem que o excelente trabalho da srª Fabbri o possa evitar. Foi isso o que bem se evidenciou no quinteto do 2º acto, em que entram todas as figuras da opera. O quinteto foi pateado, em especial, como o foi o acto inteiro, no final, conforme notámos.

A platéa quis fazer uma distincção, e ao terminar o 2º quadro do 3º acto, cantado somente pela srªa Fabbri, aplaudiu-a vivamente. Mas ao cair do panno, voltou à sua constante pateada.

Pela nossa parte folgaríamos de ouvir os Capuletos e Montecos, de Bellini, com a srªa Fabbri, mas com outros interpretes, à sua altura.

(…)

A orchestra foi regida pelo maestro Pintornio, e não escapou á má vontade da platéa, que frisou uma pequena falha da 1ª trompa, na introdução a um dos cantos de Romeo.”

 

Deliciosa é a crítica que saiu no Novidades, que até um Soneto-Brinde (do Dr. Patrocínio da Costa!!!) trazia. Querendo mostrar-se tão culto, o crítico desconhecia que Bellini não se inspirara em Shakespeare!:

 

“NA TUMBA DE JULIETA

Cantaram-se hontem em S. Carlos os Capulettos e Montecchios. Deve dizer-se que a pobre Julieta, apezar do rosado das suas faces, que denunciava saúde à legua, – contrariando Shakespeare por sua parte embevecido na contemplação d’uma Capuletto pallida, – ficou hontem bem enterrada.

Pareceu-nos, por isso, apropositado, como alusão áquelle enterramento commovedor e melancholico, reproduzir o soneto que, em 9 de agosto de 1893, o sr. Dr. Patrocínio da Costa, o distinto auctor do poema heroico Romeu e Julieta, e enthusiasta admirador das duas infelizes victimas do odio entre Capulettos e Montecchios, fez colocar em Verona, no recinto onde se conserva o cenotáfio de Romeu e Julieta.

Eis o soneto:

 

Esta de mármore arca avermelhada

Thesouro guardou já de tal valia,

Que todo o ouro do mundo não valia

A riqueza ao seu bojo confiada.

Pois de Romeu, Julietta a nobre ossada

Aqui repouso eterno recebia;

Mas de um bispo a brutal selvagaria

Cinzas taes dispersou com mão ousada!

Ternos amantes, perdoae o insulto

Do mitrado imbecil, e alegremente

Sabei que o agravo não ficara inulto.

De todas as nações devota gente

Á vossa tumba respeitoso culto

Dado tem, e há-de dar perpetuamente.”

 

A Tarde afinava a sua crítica pelo mesmo diapasão:

 

“Correu com sorte varia o desempenho que hontem obteve no teatro de S. Carlos a opera Capuletos e Montechios.

Esta obra assente em moldes antigos de orchestração, e apesar de em algumas melodias se reconhecer no decorrer dos três primeiros actos a inspiração de Bellini e no ultimo acto a do maestro Vaccay, também não nos parece partitura que impressione vivamente e na actualidade a platea do theatro de S. Carlos ainda mesmo quando obtenha desempenho superior ao de hontem por parte de todos os artistas.

Faremos, porém, honrosa excepção ao contralto Fabbri, artista que nos merece o maior elogio pela maneira como interpretou o personagem Romeu.

Tanto na cavatina do 1º acto como no 4º e ultimo acto da opera a srª Fabbri accentou com distincção todas as scenas a que deu relevo a sua sympathica e esplendida voz de contralto conseguindo esta artista por vezes o aplauso da platea e chamadas especiaes ao proscénio no final do espectaculo.

(…)

Pareceu-nos o duo final com o soprano conduzido um pouco lentamente e isso prejudicou alguma cousa o desempenho d’este trecho.

Dos mais executantes dos Capulettos , artistas secundários, o publico mostrou não gostar.

De hoje para o futuro recomendaremos, portanto, á empresa do nosso teatro lyrico, quando tenha de pôr em scena os Capulettos, e para a interpretação dos personagens secundários d’esta opera, à falta de melhores artistas, as escripturas do tenor Tamagno e do soprano Patti.

(…)

O maestro Pintorno dirigiu acertadamente a opera.

O solo de clarinete foi muito bem tocado, não sucedendo o mesmo aos da trompa.”

 

A crítica de O Dia “atirava-se” veementemente à música de Bellini:

 

“Para assistir a certas ressurreições lyricas, com o espirito concentrado e a alma satisfeita, é precisa uma grande dose de paciencia, reforçada com um tal poder de abstracção que nos transporte há sessenta anos atraz e ahi nos fixe, como se a arte se tivesse mumificado, conservando-se estacionaria. Ouvem-se ainda com prazer e aplauso as operas em que fulmina o genio, e a inspiração corre a jorro livre; mas quando as sombras evocadas não nos dão mais do que simples melodias fáceis e sem caracter, aqui e ali retocadas com uns laivos de sentimentalidade de lyrismo medianamente apaixonado, então o espectaculo como que se arrasta a custo e é com um ai! d’alívio prolongado que vemos cahir o pano.

Passou já a geração dos teimosos para quem só era bom o que era velho; nós hoje não depreciamos o velho, mas há de ser bom.

Operas há como o Barbeiro que, á força de vivacidade e de verve inegotavel, conseguem simular que as anima uma eterna juventude; outras, porém, como I capuletti ed i Montecchi, descobrem logo aos primeiros acordes que nasceram em 1830.

Nasceram, não é bem verdade, porque a musica d’esta opera fôra primitivamente composta para uma outra chamada Zaira, tendo sido o bom amigo e grande poeta Felice Romani obrigado a fazer versos e a arranjar situações para a musica já feita. Imagine-se d’aqui a propriedade e a probidade d’esta.

Graças á virtuosidade das Grisi, e d’outras que as imitaram e succederam, a opera fez o giro dos teatros italianos, embora enxertada com o quarto acto de Naccai, já composto em 1827.

Mas quando taes celebridades se sumiram, quando a evolução instrumental e a technica orchestral fizeram progressos, quando a opera começou a ser alguma coisa mais do que cantilenas saborosas para afago de ouvidos sensíveis, I Capuleti foram irremediavelmente condemnados, e a própria evolução de Bellini compondo a Norma, Sonnambula e Puritani, foi a primeira enxadada dada na cova onde está sua filha do acaso, de há muito devia continuar fria e principalmente muda.

Que se cante o Orfeo e D. Giovanni vá; por que n’ellas há sempre muito que ouvir, muito que aprender e tudo que aplaudir pelo seu poder irresistível de emoção; mas ir buscar estes macrobios Romeu e Julieta para dar que fazer ao contralto, cuja frescura já pertence ao passado, é pouco de molde para suscitar aplausos e agradar, sequer, aos menos exigentes.

O resultado é anteciparm’o-nos quinze dias ás recitas do Carnaval. Quinze dias … minto, Masini já as antecipou há três semanas.

 

Mal se içou o camaroeiro das borrascas ou por outra, assim que o maestro Pintorno subiu para a cadeira da regência, d’onde, d’antemão sabe que serão baldados todos os seus esforços, dissemos logo que os pronúncios eram maus, e não nos enganámos.

A opera apesar de reduzida de um terço com os cortes que levou pareceu-nos eterna; mas como todos diziam: “Esperemos pelo quarto acto”, esperámos, e, francamente, por muito agradáveis que queiramos ser para com a srª Fabbri, cujos esforços somos os primeiros a reconhecer, o quarto acto foi exactamente como os três antecedentes, uma longa nenia vulgar sem sentimento, sem paixão, sem nada de comunicativo; e quanto a musica, duvidamos muito que a de Bellini seja peior que a de Vaccai; estávamos ate capazes, seguindo o processo de critica que Bocage aplicou aos dois sonetos, dos quaes só um lhe foi lido, de dizer que a de Bellini deve de ser melhor.

Mas, deixando a composição e voltando á interpretação contarei uma conversa que tive com Ernesto Rossi, já quando elle tinha creado abdomen volumoso e as rugas lhe franziam o rosto.

Perguntei-lhe se d’aquella vez não representava o Romeu. Disse-me tristemente que não. “É um papel, continuou elle, que precisa de muito vigor, muita paixão, muita energia e principalmente muita mocidade; ora quando a gente é moço não o sabe representar, quando já se sabe, já a mocidade passou.”

A srª Fabbri quis ter vigor e apenas conseguiu notas d’uma vibração dura; quis ter energia e apenas a encontrou nos gestos e posições exageradas de alcydes; quis ter paixão e apenas conseguiu ser dolente; quanto á mocidade, a característica principal do papel, só a teve na cabbeleira.

Depois desta severidade o que direi da srª Barone? Direi que é uma das melhores Julietas que ali, n’aquelle palco, tem arrostado com as grandes dificuldades do papel, em que a voz, sempre a descoberto, tem exigências continuas e misturadas de paixão e agilidade, e que, não sei por que, é de uso entregar o desempenho às segundas damas, salvo se é por serem estas, em geral, as mais formosas. N’estas condições a srª Barone se não foi uma Giulietta de primo cartel, se o seu ouvido não teve a excelências dos seus olhos, se nos passos d’agilidade por mais d’uma vez a comoção a atraiçoava, foi uma patricia veronense formosa e encantadora como foi por certo a heroína sonhada por Shakespeare. Escusez du peu.

A orchestra esteve visivelmente impressionada pela previsão do desfecho.E depois para que se havia ella de ralar. Como já creou fama … Entretanto uns certos ruidos desagradáveis fizeram-lhe compreender que é preciso estar sempre alerta.

Findou a crítica; se quiséssemos continuar, mesmo revestidos do bom humor com que chegámos até aqui, não o poderíamos fazer ao defrontar com aquelle tenor!

Chinelli, meu bom Chinelli, genuino precursor do Carnaval folgazão e pacifico, não te vás e fica na terra eternamente, como fonte perenne de galhofeira alegria.”

 

Finalmente, a crítica da Revista das Alfândegas!:

 

“Os Capuletos e Montequios são na carreira de Bellini a sexta opera, escripta para Veneza onde se cantou a primeira vez em 12 de março de 1830. É uma das mais inferiores partituras do celebre melodista, da qual apenas merece menção a cavatina de Romeu de Romeu (contralto) Se Romeu t’uccise un figlio, e o duo de contralto e tenor. Remoçada com o adicionamento do ultimo acto da Giulietta e Romeu, de Vacaj, por absoluta insufficiencia do acto idêntico na obra de Bellini, nem assim mesmo consegue fazer se acceitar dos públicos d’hoje, demasiado blasés para o genero, salvo na única hypothese de ser a celebre mezzo-soprano Pasqua quem anime com o seu enorme talento o papel de Romeu.

O desempenho que agora obteve em S. Carlos foi na verdade pitoyable. Nem mesmo a bella voz da srª Tabboi logrou fazer-se aceitar do publico, justamente indignado com a insufficiencia grotesca d’aquella Julietta e d’aquelle Tebaldo, soprano Barone e tenor Chinelli. A opera cahiu portanto sob uma tremenda pateada. Na verdade estas exhumações artísticas só se permitem quando existam cantores que as interpretem condignamente. “

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