D. Carlos I eletrocutado em São Carlos?

Nas suas Memórias, o escritor Raúl Brandão desvenda-nos que as paredes de São Carlos talvez tenham albergado um perigoso electricista.

É necessário explicar. A 1 de fevereiro de 1908, dia em que se perpetrou o regicídio, estava programada uma noite histórica em São Carlos, dado que se anunciava a estreia no teatro da ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner. Protagonistas seriam Cecilia Gagliardi (Isolda), Francisco Viñas (Tristão), Gianna Lukacewska (Brangânia), Enrico Moreo (Kurwenal), Oreste Luppi (Rei Marke) e Luigi Baldassarri (Melot), sendo maestro Luigi Mancinelli. O espectáculo – obviamente histórico – teria ainda características especiais pois no decorrer do mesmo fora organizada por João Franco uma homenagem ao rei e à família real. Era natural: estávamos nos estertores da Monarquia, os ânimos andavam politicamente descontrolados e quotidianamente surgiam os mais virulentos ataques a D. Carlos I.

A récita e a homenagem não chegaram a ter lugar, obviamente, devido ao assassinato real. O luto nacional foi decretado e o teatro só reabriria a 10 de Fevereiro, data em que se deu, então, a estreia de Tristão e Isolda.

A última ópera a ser cantada em São Carlos antes do assassinato, a 30 de Janeiro, fora Linda di Chamounix de Donizetti, defendida por Giuseppina Picoletti (Linda), Gianna Lukacewska (Pierotto) e Emilio Perea (Sirval), entre outros.

Dois grandes escritores portugueses falaram do dia do regicídio: Raúl Brandão e Aquilino Ribeiro. Nas palavras do primeiro podemos mesmo ter revelações surpreendentes sobre o São Carlos!


Comecemos por seguir as Memórias de Raúl Brandão:

Janeiro de 1908

O rei em Vila Viçosa caça; o João Franco em Carnide dorme com a casa cercada de polícia. Fala-se em conspirações, na tropa, em transferências de oficiais e sargentos. O Maximiliano de Azevedo disse hoje na livraria ao Bernardino Machado:

-Isto cheira a cadáver…

-Cheira a pólvora, é o que é… – respondeu-lhe ele.

Espera-se tudo: a falência, os tiros, a revolta. Há prisões – fala-se em mais prisões ainda e os jornais estão garrotados.

 

28 de Janeiro de 1908

A atmosfera é eléctrica. – Isto não pode ser! Isto não pode ser! – ouve-se a cada passo. Toda a gente espera acontecimentos. O boato corre de ouvido para ouvido: o comandante da municipal firmou ao rei que não podia contar com a guarda para combater a tropa; há tumultos no Porto e Vila Real; está assinado um decreto expulsando do país republicanos e dissidentes; e – sabem? sabem? – o movimento é preparado pelo João Franco para tomar medidas de excepção… O Coelho de Carvalho, de grandes barbas brancas, sempre irónico, pontifica na livraria Ferreira: – Tudo isto obedece a um plano para estabelecer o protectorado inglês, com o rei gordo e repleto, e a dotação aumentada em cento e sessenta contos, pagos em oiro.

 

1 de Fevereiro de 1908

Está uma tarde linda, azul, morna, diáfana.

Converso na livraria Ferreira com o Fialho, quando entra, esbaforido e pálido, o pintor Arthur de Mello, que conheço do Porto, e diz num espanto, ainda transtornado: – Acabam de matar o rei! – O quê?! –Eu vi, ouvi os tiros, deitei a fugir…

Fecham-se à pressa os taipais das lojas. Uma mulher do povo exclama: – Mataram agora o rei. Vi os que o mataram. Eram três. Dois lá estão estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça despedaçada!… – Há palmas para o lado da praça da Figueira. Anoitece.

Um esquadrão desemboca da rua da Mouraria… Mais tarde, no comboio, um empregado do Jorge O’Neill confirma: – Vi do escritório um polícia correr atrás de um dos assassinos. A certa altura caiu-lhe o chapéu: era calvo. O polícia varou-o com um tiro.

E, pela narração do Mello, do Armando Navarro e de outros que assistiram, reconstituo assim a tragédia:

O comboio descarrilara. Seguia atrasado. Durante o trajeto o rei não fumou nem jogou, como costumava. Vinha apreensivo e a autópsia demonstrou mais tarde que não tinha comido nesse dia.

O Malaquias de Lemos contou-me que na véspera, em Vila Viçosa, o rei jogara com o príncipe. Era ao entardecer. Na chaminé um grande braseiro. Trouxeram-lhe uma carta. Para a ler melhor, levantou-se, chegando-se à janela. Duas vezes a percorreu com a vista, e depois rasgou-a em bocadinhos qu atirou ao lume. Petrificou-se um momento envolto na sombra… – El-Rei não joga? – perguntou o príncipe. – Jogo, jogo… – Sentou-se, jogou, mas tão preocupado que quase não jantou nesse dia nem almoçou no seguinte.

Nem uma nuvem. “Tarde sem par” – escreveu Ramalho. – Linda tarde para uma bomba – exclama uma menina da alta, na ponte da estação. Havia, é natural, um certo receio, e a duquesa de Palmela, ao ouvido de João Franco: – Não haverá perigo? – V. Exª vai ver que ovação! – Tinha-lha preparado para a récita da noite, em São Carlos.


Sigamos agora o que Aquilino Ribeiro, então um jovem revolucionário, nos deixou escrito nas suas Memórias, que foram publicadas sob o título Um Escritor Confessa-se. Aqui mudamos de ângulo de visão pois Aquilino era amigo e camarada dos revolucionários. Segundo o escritor nos relata nesse livro, o alvo do atentado de 1 de Fevereiro seria João Franco, que pensariam assassinar na Rua Alexandre Herculano.

 

-Ora essa, duvida da minha palavra!? O Buíça até já esteve esta manhã a tomar as suas disposições por escrito… uma espécie de testamento. Eu não tenho ninguém. Por outra, tenho uma irmã menor. Meu tio, que é rico, não faz grande favor em olhar por ela.

-E se o Franco lhes falhar na Rua Alexandre Herculano.

-Vamos dar-lhe caça até o descobrir. Nem no meio do inferno ele nos escapa. Ele há-de ir hoje ao terreiro do Paço esperar a Família Real. Fuzila-se mesmo lá!

-Não pense nisso! É correr grandes riscos…

-É e não é. Assim que a fera esteja em terra, temos a revolução na rua. A questão é aguentar…

-Veja lá, olhe que isto não é a ária do “Trovador: Madre infelice, corro a salvarti”… Supondo que tudo se passa como calcula, estes compassos de espera não obedecem ao relógio.

-Embora! O Humberto ofereceu-se para arranjar bilhetes de entrada na estação marítima, por intermédio dum parente que tem no Paço. Parece que o Dr. Melo Breyner…

-Que leviandade! E o Dr. Melo Breyner ia entregar os bilhetes em mais nem ontem… sem perguntar ao primo, ou lá o que é, para quem eram os três bilhetes de entrada? Não tem pés nem cabeça…

-Realmente. São as perlipatetices do Humberto. Não ponho em dúvida a sua boa vontade, mas deve tê-lo feito por alardear as suas relações de aristocrata.

-O Humberto é um sibarita. Peça-lhe uma crítica do “Tannhäuser”.


 

O principal motivo que me levou a escrever estas linhas foi, porém, uma entrada de Raúl Brandão nas suas Memórias. Revela-nos ele:

 

Fevereiro de 1908

As Anjos contaram à D. Maria Augusta que o electricista de S. Carlos tinha tudo preparado para o D. Carlos morrer quando se encostasse ao rebordo do camarote no teatro.

O homem suicidou-se quando se viu descoberto.

 

Pensar que D. Carlos I poderia ter morrido nesse mesmo dia em São Carlos electrocutado no seu camarote!

 

Raúl Brandão passa depois a falar de D. Manuel II e deixa-nos indicações sobre os seus gostos:

 

O novo rei não gosta de sport. Sofre de reumatismo. Adora a música. Em pequeno dizia:

– Reger uma orquestra numa grande sala e ouvir no fim os aplausos do público, isso, sim, é que é glória!… As meninas da alta-roda, falando dele, diziam desdenhosas:

-Isso são “mariquices” do senhor infante.


 

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