Eugénio de Andrade por várias vezes referiu que na sua juventude ia para o galinheiro de São Carlos ouvir, sobretudo, alguns dos grandes pianistas que actuaram no palco do nosso teatro. O poeta era amantíssimo de música e, dentro desta, preferia a música de câmara, mas era extremamente sensível a alguns intérpretes vocais, como Renata Tebaldi ou Dietrich Fischer-Dieskau, por exemplo.
Tive a felicidade de o conhecer com apenas 16 anos, levado ao Porto e a casa dele pela mão de outro poeta, Luís Miguel Nava. Recordo que nessas reuniões eu ficava sentado e calado. Ouvia, tentava absorver … e foi o que fiz de melhor.
Mais tarde, muito mais tarde, em 2000, fiz uma proposta ambiciosa a Eugénio de Andrade: eu era na altura autor de um programa de rádio e pedi ao poeta para me fazer uma lista das músicas e intérpretes que mais gostava de ouvir, para com essa lista eu realizar uma “Semana Eugénio de Andrade” que daria a conhecer a Portugal os gostos de um dos maiores poetas da nossa língua.
E assim foi!
A coisa teve um processo cronológico e trago aos leitores forma de o acompanhar.
Em primeiro lugar, um bilhete que Eugénio de Andrade me escreveu em fevereiro de 2000:
Foz do Douro, 3 Fevereiro, 2000.
Caro Jorge:
Muito obrigado pelo disco, é magnífico! Claro, sobre a Tebaldi, de que gosto tanto, pode utilizar a expressão que usei ao telefone.
(…)
Muitas saudades.
Eugénio de Andrade.
O disco em questão (o magnífico!) continha o Wanderers Nachtlied II, D. 768, de Schubert interpretado por Dietrich Fischer-Dieskau e por Jörg Demus — Eugénio de Andrade não queria outra versão, depois de ouvir esta! Quanto à expressão sobre a Tebaldi: falando nós de Callas e de Tebaldi, Eugénio disse que gostava muito da primeira, mas que a voz da Tebaldi era, para ele, como a mais fresca água da mais límpida fonte. Disse-mo ao telefone e eu … emudeci.
Outro bilhete:
Foz, 16.4.2000
Caro Jorge:
Muito obrigado pelos discos. O Gieseking e o Kempff são as minhas referências, desde a adolescência em Lisboa, para o Mozart e Beethoven.
(…)
Eugénio de Andrade.
Das audições de grandes pianistas no galinheiro de São Carlos já Eugénio de Andrade falara na sua obra; e também escrevera sobre Edwin Fischer, que o poeta comparava a um leão, devido ao seu cabelo, que parecia uma juba.
O António a quem Eugénio de Andrade envia um abraço é outro pianista, mas este português e de nome António Toscano.
Aproxima-se então a lista.
É necessário explicar. Durante alguns anos fiz algumas viagens ao Porto exclusivamente dedicadas à audição de música em casa de Eugénio de Andrade. Ele de vez em quando pedia-me para ir a casa dele ouvir música. E lá ia eu!, levando a bagagem cheia de discos, uns para ouvirmos em conjunto, outros para deixar com Eugénio. Recordo que uma das “prendas” que mais o entusiasmaram foi a Integral Mozart por Walter Gieseking. Esses encontros, para além de uma perene fonte de beleza (os poetas falam também de outra maneira!), eram ensinamentos de vida. Ouvi ali frases, junto à Foz, que me marcaram: “a família é um mal necessário: quando não se tem, tem de se inventar”; ou “o século XX é o século do lixo”. Recordo de ele me ter dito que conheceu pessoalmente Dallapicolla e que de todos os compositores do século XX o de que mais gostava era Olivier Messiaen. Falava também muito de Stravinski e de Richard Strauss. Depois de cada encontro eu chegava ao hotel e escrevia o que tinha ouvido da sua boca, pois bem sei como a memória é traiçoeira.
E chegou então o momento de Eugénio me escolher as músicas!
Antes de me enviar o rol, escreveu:
Foz, 23.4.2000
Caro Jorge:
Aqui tem uma relação, muito incompleta!, de algumas preferências musicais. Não se admire do espaço concedido à música de câmara, é a minha preferida. Mas isto é só uma amostra!
(…)
Eugénio.
Outro ainda:
26.4.2000
Caro Jorge:
(…)
Segue o resto da lista — maior que a do Don Giovanni.
Eugénio
E cá segue a lista, em três folhas de papel quadriculado! Segue também um “apêndice”, que refere Richard Strauss, Jacqueline Du Pré e Thomas Hampson.