Raul Brandão — Toda a Lisboa

Raul Brandão — Toda a Lisboa

Raul Brandão deixou-nos no Volume I das suas Memórias uma das mais deliciosas descrições do ambiente em São Carlos nos finais do século XIX.

A sociedade lisboeta tinha dois pontos de contacto – Cascais e o teatro de S. Carlos. Era aí que os ricos, ou os que aparentavam, procuravam impor-se a certa roda, que dificilmente os recebia.

De 1880 para cá as empresas sucedem-se em S. Carlos como os ministérios progressistas e regenerador, e Valdez disputa com Freitas Brito a vinda a Lisboa das grandes celebridades. Se Valdez traz Masini, Patti, Devriés, Vidal, Castel Mary, Devoyod, Cotogni, a trágica Ristori, a Regina Pacini, Novelli, de Bassini, que passou por amante de uma rainha (ver Fialho), os irmãos Andrade, etc; Freitas Brito apresenta Varesi, Gayarre, Rapp, irmãos De Reskée, Navarrini, Tetrazzini, Theodorini, Gabrielesco, Navada, Kaschmann, Sarah Bernhard, Marini, Ristori, Salvini, Rossi, Desreins, Sherie, Belincioni, Ferrani Darclée, Tamagno, Borghi-Mamo Herminia; barítono Aldighieri, Pandolfini, Saloni, Arkel, maestro Gula, Delman, tenor De Marchi, Morconi, Sarasate, e tantos outros. Os partidários de Freitas Brito pateavam sempre na época de Valdez, os de Valdez na época de Freitas Brito – o que não os impedia de se juntarem em jantares semanais, a que assistiam os dois empresários… A estas duas empresas segue Paccini, que faz fortuna. Foi nessa época que S. Carlos se transformou num grande salão. Vêm a Lisboa os reis e presidentes de repúblicas. O número de récitas aumenta, a assinatura aumenta. Paccini dá cinquenta récitas de assinatura, vinte e quatro extraordinárias e doze extraordinaríssimas, a que o público chama dos Sebastiões, e no palco desfilam Bellincioni, Krucinisky, De Lerma, Renaud, Tita Ruffo, Lassalle, etc., etc. Segue-se Anahory, com a carruagem, o charuto, Wagner – e o desastre.

Aí está todo o mundo literário e elegante, nos camarotes ou na plateia, toda a Lisboa como se diz nos jornais: Carlos de Freitas Jacome, antigo diletante, e que se julgava pai da Patti, Freitas Rego, o Príncipe Negro, conquistador irresistível, D. Luís da Câmara, o conde de Mesquitela e António de Brito, que formavam um grupo, de que Bordalo fez três medalhões para distribuir pelos assinantes de S. Carlos; Joaquim Pessoa, do Diário de Notícias, apaixonado da Baresi; José Saragga, crítico do Jornal do Comércio; o fantástico Eduardo Cheira; Mr. Garaty e mulher, assinantes crónicos de S. Carlos, ele muito baixo, ela muito alta; Dr. Patrocínio, professor de matemática – co– uma paixão assolapada pela cantora Pasqua; António da Costa e Silva, um dos mais elegantes rapazes de Lisboa; Alfredo Anjos, enamorado da Devriés, e que na noite do seu benefício lhe mandou compor um deslumbrante jardim natural para o ato do “Fausto”; Francisco da Fonseca Benevides e esposa, o autor da “História do Teatro de S. Carlos (récitas ímpares numa frisa, récitas pares numa torrinha), Freitas Branco, Silva Canellas, Jaime Arthur da Costa Pinto, que foi director da sociedade lírica que se fundou em S. Carlos com o Paccini pai; Motta Marques, que casou com a cantora Meccoci; May Figueira, o exótico Marquês de Franco e Silva Carvalho, todos três adoradores do corpo de baile; Custódio Borja, José Bacellar e Ottolini da Veiga, com mania de canto e voz de basso – e que duma vez, corrido pelo público, a quem fizera um manguito, fugiu no comboio para o Porto, ainda vestido de frade, com o fraque enfiado por cima – Eduardo Cordeiro e Augusto Ribeiro, enorme e sempre com muitos calos; Dantas Baracho; Eduardo Tavares; Espregueira e mulher numa frisa; José Martinho da Silva Guimarães; o Guerra, pai das meninas Guerras; o barão da Regaleira, António Duarte da Cruz Pinto, Agostinho Franco, José de Alpoim, Rufino de Almeida, o padeiro gordíssimo de S. Carlos, etc., etc., e, numa torrinha, que ficou na tradição, a 115, o António Manuel Teixeira, depois secretário de S. Luís de Braga, o Luís Campeão e o Oliveira, chamado das cautelas de 25: era daí que partiam sempre os aplausos ou as pateadas monumentais.

Nos camarotes e nas frisas as lindas sobrinhas do marquês de Franco, Falcarreras; a lindíssima baronesa da Regaleira; e a mais bela mulher de todos os tempos, já velha e sempre decotada, a duquesa de Ávila e Bolama; Espregueira, que foi a primeira que se apresentou com vestidos sem ombros, ostentando magníficos colares de brilhantes; Moreira Marques; a condessa de Figueiró; a condessa de Taveira, acompanhada pelo marido, sempre de casaca com botões amarelos; a condessa d’Edla, o gentilíssimo pagem do Baile de Máscaras – da cantora a rainha –; Poitier, loira ideal, que casou com o filho de Monteiro Milhões; a duquesa de Palmela; a condessa de Alferrarede; a condessa de Alverca; viscondessa de Idanha e a de S. Luís de Braga, etc., etc.; e no camarote de boca de 3ª ordem nº 70 – esta Lisboa foi sempre monumental! – a Antónia Moreno com as suas espanholas, pilar do estado, necessário e decerto muito mais útil que a junta de Crédito Público. Essa mulher acabou deixando por testamenteiro Frederico Arouca, que repudiou a fortuna que ela lhe legou, e depois de passar para alguns camarotes brasonados de fresco uma ou outra das suas mais lindas pupilas…

(…)

 

RAUL BRANDÃO: Memórias (Volume I: “A sociedade elegante”)

Detém-se aqui o escritor, passando depois a discorrer sobre Cascais.

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