Iniciemos, à vol d’oiseau, uma viagem pelos inícios de ano em São Carlos.
O primeiro janeiro do nosso teatro, então Real, foi o de 1794, meses depois da inauguração da casa a 30 de junho do ano anterior. Na primeira representação desse primeiro mês desse primeiro ano propôs-se ao público o I Ato da ópera Chi del altrui si veste presto si spoglia, de Domenico Cimarosa e Lo Sciocco Poeta di Campagna de Pietro Alessandro Guglielmi. Domenico Caporalini, castrato estrelíssima, fazia de Fiordispina, “donzela esperta e ladina”, no segundo título, e na primeira ópera encarnava Ninetta, uma “rapariga do Tirol que se finge baronesa”.
Curiosamente, a primeira ópera do janeiro seguinte, o de 1795, foi Don Giovanni Tenorio, ossia Il Convitato di Pietra de Giuseppe Gazzaniga. Este é um dos inúmeros títulos dedicados ao conquistador de Sevilha que passaram pelo São Carlos (o último foi Il dissoluto assolto de Azio Corghi, baseado em José Saramago).
Não querendo, nem podendo, ser exaustivos, refira-se que a 12 de janeiro de 1798 se apresentou Il Palazzo d’Osmano de Giusepep Gazzaniga e o bailado O Jogador ou Os Pescadores. Refere-se este espetáculo porque o programa de sala anunciava “E também aparecerá uma nova máquina de iluminação que os empresários (…) mandaram construir para se ficar gozando o espectáculo com a maior claridade possível”.
O mês de janeiro de 1799 abriu com uma obra de compositor português: La donna di genio volubile de Marcos Portugal, dirigida por António Leal Moreira. Na mesma noite foi também apresentada a Cantata L’Esilio d’Apollo.
Nos inícios dos janeiros seguintes, e até 1806, foi por cá estrela absoluta Angelica Catalani, cantora que levou a música de Marcos Portugal a todos os palcos europeus em que se apresentou – mesmo quando as composições do nosso conterrâneo eram já consideradas por muitos como antiquadas. Stendhall escreveu sobre ela.
De janeiro de 1818 a janeiro de 1828, São Carlos apresentou uma variada programação, reflexo do gosto europeu standard. Assim, o janeiro de 1819 abriu, pela primeira vez, com uma ópera de Rossini, compositor que seria posteriormente um dos mais executados na história do nosso teatro. O título escolhido foi La cenerentola. Sublinhe-se que no Carnaval do mesmo ano subiu à cena Il barbiere di Siviglia do compositor porque depois destas representações o Barbiere de Paesiello deixou de ser apresentado no nosso teatro, como aconteceu no resto do planeta.
Prosseguindo rossinianamente, o mês de janeiro de 1822 abriu com La donna del lago e o de 1823 com Eduardo e Cristina. Mais títulos rossinianos a inaugurarem janeiros em São Carlos foram : em 1826 Mathilde di Shabran e em 1827 Semiramide.
A 6 de janeiro de 1834, já depois da Guerra Civil, no Real Theatro de São Carlos abre-se o ano com L’elisir d’amore de Donizetti – constata-se que o povo entrou em cena, depois do triunfo do Liberalismo! Na mesma noite, é dançado O Sacrifício Vivo de Cúrcio.
Em 1836, o mês de janeiro abre com uma ópera de Saverio Mercadante. Este foi um dos mais importantes compositores italianos pré-verdianos e esteve contratado como maestro pelo nosso teatro. Aqui foram estreadas mundialmente algumas óperas de sua autoria.
A 4 de janeiro de 1837 é apresentado outro título donizzetiano: Torquato Tasso, no qual se apresenta um dos maiores barítonos italianos da história: Filippo Coletti. No ano seguinte janeiro abre, finalmente, com uma ópera de Bellini: Beatrice di Tenda. Filippo Coletti continuava por cá.
Em 1839, pela primeira vez, um tema histórico português inaugura a programação de janeiro: é apresentada a ópera Ines di Castro de Giuseppe Persiani. Coletti personificava o nosso rei D. Afonso IV e Inês era cantada por Sara Ferlotti. Recorde-se que a história de Inês de Castro inspirou dezenas de óperas, tendo permanecido como mais famosas a “Ines di Castro” de Niccolò Antonio Zingarelli (estreada em 1798) e esta “Ines di Castro” de Giuseppe Persiani (estreada no San Carlo de Nápoles a 28 de Janeiro de 1835).
Voemos agora até 1843 para assinalarmos que o janeiro desse ano foi o primeiro que em São Carlos se inaugurou com música de Meyerbeer, sendo escolhida para o efeito a ópera Robert, le diable.
Em 1845 é a vez de Verdi começar a abrir janeiros: apresenta-se o Ernani protagonizado pelo grande tenor Enrico Tamberlick! Em janeiro de 1847 será a vez de I due foscari.
O dia 1 de janeiro de 1851 assinalou a realização de uma Grande Gala em São Carlos com a ópera Beatrice di Tenda de Bellini. Protagonista era Clara Novello. A nossa D. Maria II falava dela por carta à sua prima Vitória de Inglaterra! Nessa Gala foi também apresentado o bailado Esmeralda, baseado no romance Notre-Dame de Paris de Victor Hugo. Prosseguindo “belcantisticamente”, assinale-se que a 1 de janeiro em 1855 se apresentou a Anna Bolena de Donizetti, espetáculo que não mereceria referência especial não fosse o facto de ter sido protagonizado por uma das mais célebres cantoras do século XIX: o grande contralto Marietta Alboni.
Verdi continuava em grande, no mundo e em São Carlos: em 1856 o mês de janeiro abriu com Nabucco e em 1858 com La traviata. A 1 de janeiro de 1863 e no mesmo dia de 1864 foi apresentada a ópera Il trovatore. No segundo destes anos apresentou-se como Manrico o tenor Pietro Mongini. Este, nascido em 1830, ascenderia à imortalidade por ter sido o primeiro intérprete do Radamés, na estreia mundial da ópera Aïda no Cairo a 24 de dezembro de 1871. Mongini ainda se apresentaria em São Carlos a 1 de janeiro de 1866 como titular do Otello de Rossini, ao lado de Adelaide Borghi-Mamo. A 1 de janeiro de 1868 Mongini cantou ainda o Masaniello na ópera La Muette de Portici de Auber. Ignorando alguns anos, atente-se que Il trovatore inaugurou também janeiro do ano de 1877, desta vez com o barítono, Gottardo Aldighieri como estrela. A 2 de janeiro de 1883 cantou-se a Aïda, em Grande Gala, com uma luxuosíssima distribuição que incluía os nomes de Josefina de Reszke (Aïda) e Giuseppina Pasqua (Amneris).
No ano seguinte, 1884, a 1 de janeiro é apresentada a ópera Les Huguenots de Meyerbeer protagonizada por Gemma Bellincioni, cantora fundamental na história da ópera pois foi a criadora do primeiro título verista italiano – a Santuzza de Cavalleria rusticana. Falando em “verismos”, sublinhe-se que no dia 1 de janeiro de 1887 se apresentou a Carmen de Bizet.
Até ao fim da monarquia São Carlos abrirá sempre as suas portas ao público no dia 1 de janeiro: em 1890 com Otello de Verdi; em 1892 com a Cavalleria rusticana mais os atos I e IV de La Favorite; em 1893, com La Gioconda; em 1894, com Lohengrin. Sublinhe-se – em 1895 – uma produção de La sonnambula de Bellini protagonizada pela portuguesa Regina Paccini.
Assinale-se que no último janeiro do século XIX, o de 1900, é apresentado o Werther de Massenet, com o grande barítono Giuseppe di Luca cantando o Albert. No primeiro dia 1 de janeiro do século XX, o de 1901, foi também apresentada ópera francesa: o Robert, le diable.
Até ao fim da monarquia, as primeiras representações de janeiro em São Carlos foram: em 1903 e 1904, Samson et Dalila de Saint-Saens; em 1905 e 1906, Lohengrin de Wagner; em 1907, Otello; em 1909, Il trovatore; em 1910, enfim, Aïda.
Em 1912 dá-se ainda a 1 de janeiro a ópera Manon de Massenet e depois desse ano há uma pausa causada pela tremenda agitação que assolou Portugal e o mundo.
A 1 de janeiro de 1920, com o panorama mundial mais apaziguado, dá-se a Thaïs de Massenet cantada por Geneviève Vix. O maestro era Pedro Blanch. Em 1922 assinale-se um Tristão e Isolda wagneriano dirigido pelo maestro Vittorio Gui. A 13 de janeiro de 1925 refira-se ainda outra Thaïs , desta feita com Germaine Lubin no papel titular.
O dia 1 de janeiro de 1927 apresentou de novo, passado bem mais de um século, um título português inaugurando o ano: Rosas de Todo o Ano de Augustro Machado, espetáculo dirigido por Pedro de Freitas Branco e cantado por, entre outros, Raquel Bastos e Laura Tágide Távares. Assinale-se que em 1950 será também um título português a abrir janeiro, no dia 15, com o Auto da Barca do Inferno de Ruy Coelho dirigido pelo compositor.
Antes deste último título, e já depois da reabertura do teatro em meados dos anos 40 do século XX, estiveram por cá, a 18 de janeiro de 1947, os Wiener Sängerknaben para interpretarem Die Opernprobe de Gustav Lortzing.
Janeiro permaneceria depois durante décadas como território da ópera alemã, devido à maneira como se passaram a estruturar as temporadas. Assim, é natural que tenham surgido muitos títulos wagnerianos como primeiros espetáculos do ano em São Carlos. O mês de janeiro da década de 50 pode mesmo caraterizar-se como fantástico em termos wagnerianos: a 29 de janeiro de 1952 tivemos o Tannhäuser; a 26 de janeiro de 1954 Os Mestres Cantores de Nuremberga (com Wolfgang Windgassen no Walther, e Karl Dönch e Armold van Mill e Anton Dermota!!!); a 19 janeiro de 1955 outro Tannhäuser (este dirigido por Pedro de Freitas Branco e com Svet Svanholm no papel titular); a 29 de janeiro de 1956 o Parsifal (com Mödl, Windgassen, Neidlinger – dir-se-ia Bayreuth!).
A 25 de janeiro de 1957 apresentou-se a Alceste de Gluck – será, curiosamente, este o título operático que também inaugurará janeiro de 2019!
Na década seguinte, assinale-se a Elektra, cantada em 1965 por Astrid Varnay, Martha Mödl e Leonie Synek. Janeiro de 1969 saiu um pouco das tradições de São Carlos, dado que a 10 desse mês se anunciou, como primeiro título, Die Bluthochzeit (Bodas de Sangue) de Wolfgang Fortner, com um libreto baseado em García Lorca. No elenco, cantando a Mãe, uma das vozes wagnerianas mais célebres da segunda metade do século XX – a de Martha Mödl, já aqui referida várias vezes. O coro foi o do Stadttheater de Würtemberg.
Nos inícios dos anos 70 (em 1970 e em 1971) quem abriu janeiro em São Carlos foi o soprano Teresa Stich-Randall, a primeiríssima Fiordiligi no Teatro de São Carlos! A 23 de janeiro de 1970 cantou Ariadne auf Naxos de Richard Strauss e a 14 de janeiro do ano seguinte a Condessa em Le nozze de Figaro.
A 12 de janeiro de 1973 foi apresentado a ópera Porgy and Bess e em 1974, último ano do regime do Estado Novo, foi apresentada L’Incoronazzione di Poppea de Claudio Monteverdi – constata-se que os tempos mudavam!
No primeiro janeiro do regime democrático tivemos em São Carlos a ópera Elegia para Jovens Amantes de Hans Werner Henze.
A partir deste ano e até 1993, data do bicentenário, em que nos deteremos, tivemos janeiros iniciados com vários autores: a 18 de janeiro de 1976 a Aïda com Cossotto e Zampieri; a 19 de janeiro de 1990 Gli Orazi e i Curiazi de Domenico Cimarosa e a 1 de janeiro de 1992 Die fledermaus de Johann Strauss II.
Em janeiro de 1993 não foram apresentados espetáculos de ópera.
Em 2019 sabe-se o que nos espera: a Alceste de Gluck, com Ana Quintans no papel titular e com encenação e Graham Vick!