MOZART, O EXTREMISTA
O mundo mozarteano é um cristal, no sentido em que tudo ali é perfeito, brilhante, formalmente inexpugnável. Na obra do génio de Salzburgo existem, porém, páginas cujo despudor anuncia as desmesuras românticas — estou a lembrar-me, por exemplo, da cena final da ópera Don Giovanni, páginas que arrepiavam José Saramago.
Mozart podia ser um extremista!
No aspeto vocal foi mesmo um dos mais vincados extremistas que conheço, pois não existe obra em que tanto se peça à extensão dos cantores. Bem sei que um pouco depois dele chegariam à ópera os maravilhosos finais carregados de sobreagudos, nos quais incandescia a heroína romântica, mas Mozart, em algumas das suas árias, obrigou os intérpretes a feitos que não lembrariam a mais ninguém (e aviso que nem sequer estou a falar dos famosos fás sobreagudos da Rainha da Noite).
Foquemo-nos, então nos dois extremos da voz: o agudo e o grave.
O EXTREMO AGUDO
Já que a ópera Alceste de Gluck faz parte da nossa temporada, diga-se que, como era habitual na época (Haydn também o fez), Mozart escreveu música para ser introduzida em óperas de outros compositores. A 8 de janeiro de 1779, por exemplo, escreveu, para serem inseridos em representações da Alceste de Gluck, um recitativo e ária confiados à protagonista: Popoli Di Tessaglia…Io Non Chiedo, K 316. Uma ária (que depois se tornaria em “Ária de Concerto”, pois nunca mais foi usada em representações da Alceste) que foi especificamente escrita para fazer brilhar a cantora Aloysia Weber, então com apenas 18 anos, que seria a futura cunhada do compositor. A ária tornou-se famosa porque inclui, por duas vezes, uma nota verdadeiramente estratosférica — um sol sobreagudo, um tom portanto acima das terríveis e temíveis notas da Rainha da Noite (1568 Hz pelo moderno diapasão).
Ouçamos como Edita Gruberova afronta a nota. Por duas vezes!
O EXTREMO GRAVE
Quanto ao extremo grave, Mozart também não se mostrou meigo. Ouçamos Osmin, um dos personagens da sua ópera O Rapto do Serralho, lançar um impressionante ré no extremo grave da voz (sustentado, ainda por cima) na sua ária “Ha, Wie Will Ich Triumphieren”. Algo verdadeiramente inumano, inusitado, raro.
O baixo aqui é Robert Lloyd.