Stravinski, a bela Lisboa, comida boa e … dois gatos mortos

Stravinski, a bela Lisboa, comida boa e … dois gatos mortos

A O.S.P. vai apresentar-se em fevereiro sob a direção da sua maestrina titular Joana Carneiro nos próximos dias 9 (Caldas da Rainha) e 10 (C.C.B.) com um programa em que, a par de obras de Gabrieli e de Gubaidulina, se vai interpretar A Sagração da Primavera de Igor Stravinski, obra cimeira da história da música e causadora de um dos maiores escândalos de todos os tempos, devido à violenta controvérsia que envolveu a estreia mundial da partitura em Paris no ano de 1913.

Igor Stravinski, curiosamente, ouviu a sua Sagração em Lisboa numa das duas ocasiões em que esteve na nossa cidade como maestro das suas obras.

A primeira dessas ocasiões ocorreu em 1954, a convite da Empresa do Tivoli — o jornal O Século publicou uma foto do compositor a desembarcar do avião. Stravinski nessa ocasião não veio acompanhado pela mulher Vera, mas enviou-lhe cartas e telegramas. Assim, a 31 de maio desse ano de 1954 escrevia ele do Hotel Aviz:

O voo para Lisboa [de Genebra] durou 4 horas e 20 minutos e foi esplêndido. Ainda não estava escuro sobre a bela Lisboa quando aterrámos às 21h30.

Estou a descansar bem. Terei dois ensaios na quinta-feira, dois na sexta, depois um no domingo de manhã, sendo o concerto nessa mesma noite. O segundo concerto será terça-feira, dia 8. Partiremos dia 10, às 18h00.

A comida aqui é muito boa, o hotel é pequeno e antiquado, mas muito elegante. O ar é extraordinariamente claro, as cores do céu e dos campos excecional, como se tivessem engolido uma grande quantidade de mescalina — é incrível!

Do mesmo Hotel Aviz escreveu de novo a Vera passados poucos dias:

O concerto “Divertimento”, “Scènes de ballet”, “Jeu de cartes” e “Petrushka” correu brilhantemente — e refiro-me às lâmpadas que sem piedade difundiam luz do teto. A orquestra tinha ensaiado muito, mas os instrumentistas eram medíocres. O público era numeroso, mas no seu conjunto um pouco mole.

Ontem, pelo Pentecostes, fomos a Fátima, a 150 kms. daqui. O seminário, previamente avisado, esperava-nos em peso.

Recebi também a tua carta com a triste notícia da morte dos nossos dois gatos.

Amanhã dirigirei “Apollo”, “Scènes de ballet”, “Petrushka”, “O Pássaro de Fogo” e imagino o quanto o público gritará em ovação.

A posição geográfica de Portugal fazia com que nesse tempo os Açores e Lisboa fossem pontos de escala habituais para os voos que provinham das Américas. Assim, Igor Stravinski regressou a Lisboa em março de 1955, mas apenas de passagem. Também nos diários de Vera encontramos referências a essa visita.

14 de março — Partimos às 14h00 num voo para Lisboa. Aterrámos nos Açores e encontrámos Bill Congdom, que viaja no mesmo avião.

15 de março — Aterragem difícil em Lisboa às 9h30. Somos recebidos por Constantino Varela Cid no Hotel Aviz. Depois da refeição, visita a Belém (o Museu e o Mosteiro), Sintra, Cascais, Estoril.

16 de março — Visita a Évora. Jantar no hotel na companhia de Congdom.

17 de março — Depois da refeição, visita ao Norte.

A 18 de março os Stravinski saíram de Portugal de automóvel. Visitaram Sevilha (via Badajoz) e seguiram depois para Madrid, onde o compositor iria dirigir.

Em 1956 no Diários de Vera também encontramos estas duas entradas, referentes a uma outra passagem por Portugl, também apenas de visita:

2 de Julho — Açores à vista.

4 de julho — Lisboa. De automóvel até ao Hotel Aviz. Visita a Mafra, Sintra, Queluz. Maravilhoso!

Igor Stravinski veio a Portugal pela última vez em 1966 a fim de dirigir a 1 de junho desse ano parte de um concerto preenchido com duas obras maiores de sua autoria: A Sagração da Primavera e Oedipus Rex. Este concerto inseriu-se no X Festival Gulbenkian de Música e constituiu uma noite apoteótica no velho Coliseu dos Recreios.

Stravinski vinha de Atenas e ao chegar a Lisboa disse, com muita graça e numa óbvia homenagem a Beethoven, que ele e a mulher se sentiam “as ruínas de Atenas”. A esperá-lo no aeroporto estavam Lopes-Graça, Joly Braga Santos, João de Freitas Branco, Pontes Leça.

Nesse memorável concerto de 1 de junho Robert Craft dirigiu na primeira parte A Sagração da Primavera e na segunda Stravinski dirigiu Oedipus rex. Sabemos que Craft considerou que a orquestra tocou superficialmente a Sagração no primeiro ensaio, mas com o decorrer dos trabalhos pareceu ficar satisfeito. Na noite do concerto, enquanto Craft dirigia, Stravinski deixou-se fotografar no seu camarim, bebeu um pouco de whisky, deu dois dedos de conversa e pediu à mulher que arrecadasse o “cachet”.

Vera Stravinski também deixou registos no seu Diário desta viagem a Lisboa em 1966:

27 de maio — Viagem difícil para Lisboa – o voo estava apinhado, devido a uma greve da Alitalia. Bob ensaia das 21h00 à meia-noite.

28 de maio — Bob ensaia das 15h30 às 18h00 e das 21h00 à meia-noite.

29 de maio — Igor não se sente bem.

30 de maio — Igor ensaia apenas uma hora – das 10h30 às 11h30. Bob encarrega-se do resto do ensaio e depois ensaia sozinho das 13h30 às 18h00.

31 de maio — Dois ensaios.

1 de junho — Concerto em Lisboa

2 de junho — Voamos para Paris.

Sabemos ainda que Stravinski foi o último passageiro a embarcar e que a sua bagagem tinha excesso de peso. A Air France perdoou!

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