Temos orquestra!

A Orquestra Sinfónica Portuguesa deu o seu primeiro concerto no Cinema Tivoli em Lisboa no dia 5 de Fevereiro de 1993. A propósito dos quase 25 anos sobre a data, eis a crítica de Alexandre Delgado ao evento. Saiu no Público poucos dias depois e surgiu publicada em A Culpa é do Maestro (Editorial Caminho), que reúne críticas musicais de Alexandre Delgado entre 1990 e 2000:
 

Temos orquestra!

O Cinema Tivoli tem uma aura que permanece intacta desde que a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional e Pedro de Freitas Branco aí realizaram décadas de concertos com sala apinhada. Foi talvez para gozar de uma réstia dessa aura que aí se estreou agora a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Uma escolha acertada, antes de o camartelo se encarregar de “melhorar” o belo edifício de Raul Lino. Com maior ou menor optimismo, esta estreia fez-nos a todos respirar de alívio.

Estreia de uma orquestra sinfónica: até soa mal ao ouvido! A democracia de sucesso ainda só tinha conseguido estoirá-las. Esta inversão da tendência, ao fim de três orquestras extintas, é para ser saudada com entusiasmo vigilante. Para curar a xenofilia dos nossos snobes, note-se que a presente orquestra é constituída em grande parte pelos músicos da Orquestra Sinfónica do Teatro Nacional de São Carlos. O nível atingido logo no primeiro concerto foi excelente, do melhor que se tem conseguido no nosso país.

É bom verificar que a técnica do rolo cilindrador amainou. Ao contrário do orquestracídio de Teresa Gouveia que acabou com duas orquestras sinfónicas para criar a orquestra de câmara mais cara e efémera da Europa, desta vez houve um pouco mais de bom senso: a presente orquestra é de facto sinfónica e aproveitou no essencial a que desapareceu.

O bom nível atingido deve-se em grande parte ao maestro que até há poucas semanas estava apontado como director, o inglês Martin André. Num volte-face que envergonha o nosso país, ele acabou por ser a peça a sacrificar, com uma leviandade altamente gravosa para o bom nome de um Estado de Direito. A contratação de Álvaro Cassuto para esse lugar, por ser “mais em conta”, não é abonatória para o currículo de ninguém. Independentemente da contestação vinda a público, é pelo menos curioso não ser o maestro-director a dirigir a orquestra na estreia.

Lukas Foss trouxe-nos uma Sinfonia nº 1 de Brahms em cores fortes e traços enérgicos. Ficámos subjugados com a sonoridade pastosa e excelente afinação das cordas, o equilíbrio das madeiras, a qualidade de metas e percussão. Se as primeiras merecem os principais elogios, há que saudar a garra com que toda a orquestra reagiu a este primeiro embate. É confortante ver nas primeiras estantes alguns dos nossos melhores músicos, em especial Vasco Barbosa como concertino, um raro e saudável prosseguir da nossa tão vilipendiada tradição instrumental.

Refira-se de passagem a bela intenção mas pouco interessante musical da chostakovitchiana Ode para orquestra da autoria do maestro convidado, bem como o acidente de percurso que foram as Variações sobre um Tema de Paganini de Rakhmaninov. Tendo como solista Sequeira Costa, Lukas Foss não foi suficientemente lesto no acompanhamento. A verdade é que quando um pianista corre, há que correr com ele, no sentido musical do termo.

A terminar, fazemos votos exangues para que esta orquestra não seja apenas um fogacho para tapar misérias nas comemorações do bicentenário de São Carlos ou de Lisboa Capital da Cultura: não é com contratos de oito meses e cláusulas neo-esclavagistas que saímos da nossa condição de terceiro-mundismo musical.

Jornal Público, 9.2.1993

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