A FILARMÓNICA DE BERLIM COMO INSTRUMENTO DE PROPAGANDA
O regime nazi aproveitou a Orquestra Filarmónica de Berlim (OFB) como precioso instrumento de propaganda político-cultural — a formação apresentava as qualidades de rigor, coesão e elevação espiritual que os nacional-socialistas gostavam de proclamar como alemães e como seus. Assim, após a tomada do poder por Hitler a orquestra viajou por toda a Europa: Grã-Bretanha (1933 a 1938); Holanda (1933, 1935, 1937, 1940, 1941); Suíça (1933, 1934, 1938, 1941, 1942); Balcãs (1936, 1940, 1943); Hungria (1940, 1942, 1943); Roménia (1936, 1940, 1943); Escandinávia (1937, 1940 a 1942); Polónia (1941 a 1944); Espanha e Portugal (1941 a 1944). Quando os destinos eram pouco familiares, como Portugal, um representante da administração viajava previamente para organizar o evento.
No decorrer da monstruosa guerra que assolou a Europa e o mundo, estas digressões restringiram-se geograficamente e tornaram-se verdadeiras investidas culturais aos países neutrais ou aliados do Eixo, passando a ser, pois, naturalmente determinadas por Goebbels, cujo ministério escolhia os itinerários em funções de uma constantemente actualizada avaliação política. Em 1942, por exemplo, uma digressão planeada para a Suíça e para a Suécia foi transformada numa digressão de cinco semanas a Espanha e a Portugal.
Nos programas destas digressões os compositores alemães e austríacos (Beethoven, Brahms, Wagner, Richard Strauss, Mozart, Schubert) constituíam o fulcro do repertório. Em Portugal, como em todos os outros destinos, nos finais dos concertos, ou como extras, escolhia-se Wagner, com as Aberturas de Tannhäuser e de Os Mestres Cantores de Nuremberga em destaque. A OFB apresentava-se geralmente com os seus próprios instrumentistas como solistas. Assim aconteceu em São Carlos, onde Erich Röhn e Tibo de Machula estiveram em evidência. Em alguns países os solistas (abertamente nacional-socialistas) eram contratados pela Filarmónica fora das suas fileiras.
SÃO CARLOS — 1941 A 1944
A OFB já se tinha estreado no Teatro de São Carlos no dealbar do século XX, mais concretamente em maio de 1901, sob a direcção do célebre maestro Arthur Nikisch, mas o que nos interessa agora focar são as visitas efectuadas entre 1941 a 1944, no decorrer da II Grande Guerra, durante as quais a orquestra esteve dirigida por alguns dos seus mais importantes maestros: Clemens Krauss; KarBöhm; Hans Knappertsbusch. Nestas temporadas a OFB esteve “ladeada” (pois as apresentações foram aproximadas no tempo) por outras grandes figuras da música alemã, como Walter Gieseking ou Wilhelm Backhaus. Durante estes anos também se apresentou várias vezes a Orquestra de Câmara de Berlim sob a direcção de Hans von Benda.
Em Maio de 1941 a Filarmónica esteve sob a direcção de Karl Böhm e regressou em Maio de 1942 sob a direcção de Clemens Krauss e com a participação do soprano Viorica Ursuleac. Esta, casada com Krauss, era o soprano favorito de Richard Strauss, tendo apresentado as estreias mundiais de Arabella (1933), Friedenstag, que foi dedicada ao casal (1938) e Capriccio (1942). A Alemanha por estes anos acreditava na vitória e andava impante. No Diário da Philarmonie escrevia-se mesmo em 1942: “Agora o povo de Portugal sabe o que a música alemã significa para o mundo. Esta vitória que a Filarmónica de Berlim obteve numa terra neutra a meio da guerra … jamais será esquecida em Lisboa.”
A OFB regressou a São Carlos em Junho de 1943 sob a direcção de Hans Knappertsbusch. O panorama da guerra estava a mudar e as prosas deixaram de ser triunfalistas: o Eixo perdera o Norte de África e tudo estava suspenso a Leste. Neste Junho de 1943, para além destas apresentações em concerto, a OFB também tocou em récitas (luxuosas récitas, encenadas por Heinz Tietjen!) da ópera Tristão e Isolda de Wagner. Crê-se que foi esta a primeiríssima vez na sua história que a Orquestra Filarmónica de Berlim tocou no fosso. Em Maio de 1944, finalmente, a formação regressou, uma vez mais sob a direcção de Hans Knappertsbusch. O panorama mundial era radicalmente diferente do das apresentações de 1941! Recordemos apenas que a 30 de Janeiro desse ano o edifico da Philarmonie tinha sido destruído em Berlim por bombardeamentos britânicos. Num livro de Misha Aster intitulado The Reich’s Orchestra – The Berlin Philarmonic 1933-1945 podemos conhecer episódios curiosíssimos, investigadas pelo autor nos arquivos da Filarmónica.
Em relação a Lisboa, ficamos a saber que em 1942 parte da orquestra teve de se alojar em casa de membros da comunidade alemã em Portugal, o que não agradou a muitos: “Para reduzir os gastos com a hospedagem, a colónia alemã em Lisboa oferece-se para receber aproximadamente trinta elementos da orquestra […] Apela-se a trinta cavalheiros voluntários para essas casas privadas”. Obviamente, tudo tinha sido minuciosamente investigado e alguns desses anfitriões eram entusiastas defensores de Hitler.